Definição do Jazz

(Berendt p.149-155)

Por mais que eu tenha consultado dicionários ou enciclopédias, não encontrei, até hoje, uma definição satisfatória da música do jazz. O famoso Dictionary of modern music and musicians diz, por exemplo, o seguinte: “O jazz é uma espécie de música de dança negra de origem americana, baseada em ritmos muito flexíveis e, sobretudo, muito sincopados”. O Webster’s new international dictionory of the english language, o conhecido Webster (edição de 53), assim comenta: “Estilo de música americana, particularmente usado no acompanhamento de dança, nasceu do ragtime e se desenvolveu através da assimilação de ruídos excêntricos .. , pleno de ritmos adequados para dança, alguns frenéticos, outros mais sutis”. Um pouco mais coerente é, talvez, a opinião do Brockhaus, onde já em 1931, se lia o seguinte: “O jazz, uma música de dança modern que se tornou, praticamente, um estilo musical, nasceu do cruzamento da canção e da opereta anglo-escocesa, com o canto religioso e de trabalho do negro norte-americano, assim como de suas danças de origem africana. O essencial no jazz é sua estrutura rítmica, bastante avançada, com uso constante de síncopes. É muito interessante o seu aspecto sonoro, resultante de um tratamento especial de instrumentos como banjo, bateria e sopros em geral”.

Interessante é que todas as tentativas que se fez de definir o jazz comparando-o com a música européia, de um lado, ou com a música africana, de outro, têm sido absolutamente insatisfatórias e incoerentes. O jazz tem que ser estudado e compreendido como um fenômeno em si.

As primeiras definições satisfatórias que se fez dessa música procedem de Marshall W. Stearns e do crítico Californiano Woody Woodward. Baseado em seus argumentos, eu sugeriria a seguinte definição para o jazz:

O jazz é uma forma de expressão artístico-musical que nasceu nos Estados Unidos em conseqüência do encontro do negro com a tradição musical europeia. O arsenal harmônico, melódico e instrumental, se origina na tradição cultural do Ocidente. Ritmo, fraseado, sonoridade, assim como particularidades da harmonia-blue, são de origem africana, elementos estes, porém, filtrados pela experiência vital do negro nos Estados Unidos.

O jazz se diferencia da música européia pelos tres seguintes elementos básicos:

  1. através de uma relaçio especial com o sentido de tempo, caracterizado em parte pelo conceito de swingue;
  2. pela espontaneidade e vitalidade de sua criação e execução instrumental e vocal, onde a improvisação ocupa um papel de extrema importância;
  3. pela sua sonoridade e seu fraseado, onde se espelham as características e a contribuição individual do intérprete.

Esses três elementos atuam na intimidade do jazz e o transformam contínua e organicamente, assumindo, cada um deles, alternadamente maior ou menor importância, nos seus diversos estilos.

Uma das observações mais importantes dessa definição, porém, é aquela que afirma ser o jazz resultado do encontro do negro com o branco; isto é, ele não é um fenômeno de origem africana ou européia, pura e simplesmente. A relação de componentes da cultura musical de um continente e do outro, mixadas num terceiro – na América do Norte – é que formou a sua base. É certo que o instrumental do jazz é de origem européia, mas o banjo, que depois foi substituído pela guitarra elétrica, é uma invenção do negro americano. A bateria, que hoje é usada em todo tipo de música popular e que difere completamente dos instrumentos de percussão de origem européia, foi criada e desenvolvida pelo jazz. A sonoridade do jazz é algo criado pelo negro americano, embora nela se encontre uma série de elementos vocais e instrumentais conhecidos também na música européia.

É importante notar que os três pontos básicos desta definição se relacionam intimamente com os três citados em “Os elementos do jazz”, ou seja, swingue, improvisação e sonoridade/fraseado.

As ligações e o comportamento desses elementos nos mostram claramente o próprio desenvolvimento do jazz. Na realidade se poderia escrever uma história do jazz apenas baseada no procedimento desses três elementos e suas relações entre si.

Já comentamos que a sonoridade e o fraseado do jazz formam quase um só complexo. No estilo New Orleans, o fraseado pouco se diferenciava do da música de circo ou popular européia em geral. Por outro lado, nessa época a sonoridade jazzística já era algo especial, pois o músico manipulava e soprava o instrumento de forma diferente que o europeu. Com o tempo a sonoridade do jazz assimilou técnicas de execução atuais e passou a operar com instrumentos modernos, se aproximando, assim, da sonoridade da música de concerto européia de hoje. O fraseado do jazz, porém, se emancipou e adquiriu características próprias, se distanciando consideravelmente do da música erudita.

Mais um exemplo onde se nota essa relação sonoridade/fraseado: no jungle sound de Tricky Sam Nanton, ♫ Bubber Miley, Cootie WiIliams, da orquestra de Duke Ellington. Como o próprio nome o diz, a sonoridade assume, aqui, maior, importância; neste caso o fraseado passa a um segundo’ plano, pois se condiciona. às características desses efeitos sonoros. Eles nada têm a ver com o fraseado normal da época, já tipicamente jazzístico. Por outro lado, o refinado e desenvolvido fraseado jazzístico de músicos como ♫ Stan Getz (sax-tenor), Hubert Laws (flauta), ou Lee Konitz (sax-alto), atrai para si o principal interesse da execução, relegando a sonoridade a um segundo plano – como dissemos, o som do sax de Stan Getz poderia, perfeitamente, ser enquadrado no bloco sonoro da música de concerto.

Sonoridade e fraseado se comportam, portanto, como os dois pratos de uma balança.

Uma relação, não tão estreita, porém, como a existente entre sonoridade e fraseado, acontece, por exemplo, entre swingue e improvisação. É muito comum se ouvir grandes trechos orquestrais, onde toda a big band “swinga” entrosadamente, não acontecendo nenhuma improvisação solista. Por outro lado, muitas vezes, a improvisaçio se liberta de uma tal maneira, como em muitas gravações do Free Jazz” que os impulsos do swingue praticamente desaparecem. Uma das primeiras gravações do free, onde se nota esse fenômeno é Intuition de Lennie Tristano.

É curioso notar como esses elementos se alternam na história do jazz. Os pianistas do ragtime já swingavam, mas não improvisavam nem possuíam uma sonoridade jazzística. O New Orleans, possuía uma sonoridade caracterlstica, mas os ritmos de marcha, praticamente, eliminavam o swingue e o tipo de improvisação coletiva, pela constante repetição, se tomavam verdadeiros head arrangements. No estilo swing, há muito arranjo e big band-music, fatos estes que deslocam para um segundo plano a improvisação e a sonoridade individual, em favor do balanço orquestral.

Curiosamente, porém, em todos os grandes momentos do jazz essas três características principais estavam presentes, ou seja, na música de Louis Armstrong, Jimmy Harrison, Coleman Hawkins, Lester Young, Charlie Parker, Miles Davis e Ornette Coleman.

A esses três elementos se poderia associar um quarto, este de natureza estética e técnica, que confere a essa música a importância que ela tem: a qualidade. Alguns discutem, por exemplo, se ♫ Stan Kenton ou ♫ Dave Brubeck desempenharam ou não um papel decisivo num dado momento da história do jazz. Pela qualidade musicál, alto nível técnico e formato ou perfeito acabamento de suas contribuições, eles ocupam uma posição segura dentro do jazz.

Qualidade e formato são dificilmente definíveis. Milhares de pianistas de bar improvisam e fraseiam jazzisticamente sem com isso deixarem de fazer uma música puramente comercial, enquanto muitos músicos, apenas com um elemento de nossa definição, se tomam autênticos e importantes jazzistas. É difícil se encontrar hoje um arranjo de música pop que não tenha elementos de jazz. Muitas vezes se ouve na música puramente comercial contraponto à la dixieland e o boogie-woogie se tomou, praticamente, música popular. O que era anteriormente rhythm and blues se tornou comercialmente rock’n’roll. O jungle sound da orquestra Duke Ellington virou clichê de música de cinema. A música que Benny Goodman fazia com seu combo nos anos 30 e que representava o mais criativo jazz se ouve hoje em qualquer cocktail ou reunião festiva. Música de big band à la Benny Goodman ou Jimmie Lunceford pode ser executada por qualquer orquestra de rádio. Mesmo fraseados à la Chárlie Parker foram empregados na música comercial, com ou sem o título de “Dancemos bebop”, sem que nenhum desses exemplos pudesse ser considerado jazz, apesar de se basearem em modelos dessa música. Mesmo grandes nomes da música popular de hoje são inconcebíveis sem os seus passados jazzísticos: Sarah Vaughan, Billy Eckstine, Prank Sinatra, Nat King Cole, Glenn Miller, Ray Charles, Otis Redding, James Brown e outros.

A comercialização de um elemento musical incita, praticamente, o jazzista a criar uma nova música. Como diz André Hodeir, o novo de hoje é o clichê de amanhã.

Um outro aspecto do jazz que o acompanha do nascimento aos dias de hoje é o fato de ser considerado por seus autores como música de protesto. Protesto contra discriminação racial, social, espiritual; protesto contra clichês da moral burguesa, contra a massificação do mundo e despersonalização do indivíduo etc. A maioria dos músicos americanos, porém, fazem de sua música uma arma de protesto sobretudo racial. Apesar de nascer, muitas vezes, motivada por um sentimento dessa natureza, ela atingiu uma universalidade que poucas outras manifestações artísticas conheceram: o jazz é feito hoje por músicos de todas as raças, cores ou sistemas políticos.

Como reconhecer o jazz

(Hobsbawm p.41-51)

Este interlúdio pode ser tranqüilamente pulado pelo leitor mais bem informado. Dirige-se àqueles que, embora interessados, nada sabem sobre jazz, não conseguem reconhecer um disco de jazz quando o escutam e não querem consultar amigos ou parentes a respeito do assunto. Dirige-se ainda aos leitores que já fizeram a pergunta “O que é jazz?” a aficionados e se depararam (o que é extremamente provável) com barulho e confusão. Contém uma descrição bastante sucinta, ou melhor, um “modelo de reconhecimento” de jazz, e uma pequena lista de alguns dos principais artistas e dos discos mais característicos desse gênero de música.

Não existe uma definição precisa ou adequada de jazz, a não ser em termos muito genéricos ou não musicais, que de nada ajuda quando o objetivo é reconhecer a música escutada. Como vimos,jazz não é um gênero autocontido ou imutável. Não é uma linha divisória, mas uma vasta zona fronteiriça que o separa da música popular comum, em grande parte marcada pelo jazz e a ele misturada em vários níveis. Não há um limite fixo que o separe de tipos anteriores de música folclórica, das quais emergiu. Até a última guerra, a linha divisória entre ele e a música erudita ortodoxa era bem melhor definida. Mas até mesmo esse marco se tornou impreciso, graças aos ataques sofridos de ambos os lados. Como também já vimos, o jazz tem, em seu curto tempo de existência, uma notável história de mudanças, e não há garantia de que irá parar de se modificar. Da mesma forma que uma definição adequada dejazz escrita em 1927 teria de ser modificada e ampliada para descrever o jazz de 1937, e novamente reescrita para identificar o de 1957, é extremamente provável que qualquer incauta descrição feita hoje se torne ultrapassada. Os amantes e os críticos de jazz, habitantes de um universo exclusivo e pleno de discussões, tentaram encontrar definições arbitrárias para separar ojazz da músicapop, ou o que consideram “o verdadeiro jazz” de suas “degenerações”. Isso não pode ser feito; não porque seja impossível elaborar e estabelecer tais definições convencionais – as artes ortodoxas o fazem o tempo todo – mas porque o jazz, sendo uma arte popular moderna, carece até hoje de autoridades e instituições capazes de fazer com que tais definições sejam respeitadas.

As escolas de música do exército, os professores de canto e as academias de balé poderão impor uma maneira “correta” de se tocar cornetas, de cantar coloratura, ou de mover os pés, que só será desrespeitada por uma revolução técnica ou secessão. A tradição, nas sociedades pré-industriais norteadas por costumes, pode igualmente impor um repertório “correto” para o músico, bailarino ou cantor. O jazz, porém, está na mesma posição daquele produtor famoso de Hollywood que, ao ouvir que não poderia fazer uma cena de uma audição de Mozart tocando Danúbio Azul, perguntou: “Quem pode me impedir?”. Ninguém. Aí está a diferença entre o jazz, no sentido estrito, e a música pop comercial. Pode ser que em um certo ponto da evolução do jazz seja melhor deixar de chamá-lo por esse nome. Mas, por sua própria natureza, ele é uma música sem linhas divisórias precisas.

Apesar disso, a título de orientação em linhas gerais, podese dizer que o jazz, da forma como se tem desenvolvido até hoje, é a música que contém as cinco características abaixo citadas. A música pop com tonalidades jazzísticas poderá conter algumas das três ou quatro primeiras características, porém não as cinco, ou terá as últimas de forma bastante diluída:

  1. o jazz tem certas peculiaridades musicais, decorrentes principalmente do uso de escalas originárias da África ocidental, não comumente usadas na música erudita européia; ou da mistura de escalas ditas européias e africanas; ou ainda da combinação de escalas africanas com harmonias européias. A expressão mais conhecida dessas peculiaridades é a combinação da escala blue – a escala maior comum, com a terceira e a sétima abemoladas – usada na melodia, com a escala maior comum usada para harmonia. (As notas abemoladas são as ditas notas blue.);
  2. o jazz se apóia grandemente, e talvez de maneira fundamental, em outro elemento africano: o ritmo. Não exatamente nas formas africanas, geralmente muito mais complexas do que a maioria das formas de jazz. Mas o elemento de variação rítmica constante, vital para o jazz, certamente não deriva da tradição européia. Ritmicamente o jazz se compõe de dois elementos: uma batida constante e uniforme – geralmente de dois ou quatro por compasso, pelo menos aproximadamente – que pode ser explicitada ou estar implícita, e uma ampla gama de variações sobre essa batida principal. Essas variações podem ser compostas de vários tipos de síncopes (colocação de acento em uma batida normalmente não acentuada, ou supressão do acento em uma batida comumente forte) ou de uma variação muito mais sutil sobre o ritmo, acemuando a batida precedente ou a posterior, ou ainda de outros meios, como “ataque” e intensidade. A interação dos vários instrumentos de jazz, cada qual com suas funções rítmicas e melódicas, complica um pouco mais o assunto. O ritmo é essencial para o jazz: é o elemento de organização da música. É, no entanto, extremamente difícil de ser analisado, e alguns de seus fenômenos, como o que vagamente se chama de swing, resistem a qualquer tipo de análise. Podem apenas ser reconhecidos. É difícil, por exemplo, perceber por que os bons bateristas, embora mantendo o ritmo constante, podem e dão a sensação de aceleração contínua ou driving;
  3. o jazz emprega cores instrumentais e vocais próprias. Essas cores derivam, em parte, do uso de instrumentos incomuns em música erudita, pois, embora o jazz não tenha uma instrumentação específica, a orquestra de jazz representa uma evolução sobre a orquestra militar, utilizando, portanto, poucas cordas e reservando para os metais e madeiras funções pouco usuais em orquestras sinfônicas. Instrumentos exóticos também são utilizados ocasionalmente: vibrafones, bongôs, e maracas.· Mas geralmente as cores do jazz surgem da técnica peculiar e não convencional pela qual os instrumentos são tocados, e que foi desenvolvida porque os primeiros músicos dejazz eram totalmente autodidatas. Por esse motivo eles fugiram às convenções há muito tempo sedimentadas pela música erudita européia no que se refere à maneira “correta” de utilizar instrumentos ou vozes educadas. Esse padrão convencional europeu tinha sido estabelecido com o objetivo de produzir um tom instrumental puro, claro e preciso, e um tom vocal o mais próximo possível como um tipo especial de instrumento. A maneira mais simples de explicar o tom jazzístico é dizendo que, automaticamente, o jazz tomou o rumo oposto. Sua voz é a voz comum, não educada, e seus instrumentos são tocados – até onde isso é possível – como se fossem essas vozes. (Diz-se mesmo que o grande King Oliver, quando em termos pouco amigáveis para com os integrantes de sua banda, só falava com eles por meio de sua corneta, ou que “oitenta e cinco por cento do que Lester Young diz no sax pode ser entendido”). Não há, no jazz, tons ilegítimos: o vibrato é tão legítimo quanto um som puro, tons “sujos” (dirty) tão legítimos quanto sons “limpos”. Alguns músicos influenciados pela música ortodoxa – principalmente em jazz cool- experimentaram, ocasionalmente, tons instrumentais ortodoxos. Porém, isso é simplesmente mais uma prova de que qualquer som emitido por um instrumento é legítimo. Os músicos de jazz são ainda grandes experimentadores, explorando até as últimas conseqüências os recursos técnicos de seus instrumentos, tentando, por exemplo, tocar trompete com a flexibilidade de um instrumento de madeira, ou trombone com registro de trompete. Essas obras, freqüentemente de excessiva bravura artesanal, produzem suas próprias tonalidades não-ortodoxas. Basicamente, porém, o jazz tem usado os instrumentos como vozes durante a maior parte de sua história. Como as vozes nas quais se baseiam os instrumentos e o que essas vozes tinham a dizer ou sentiam vinham de um determinado povo vivendo em determinadas condições, as cores do jazz tendem a pertencer a um espectro especial e reconhecível. Por exemplo, é muito provável que, se os instrumentos de metal e madeira tivessem sido utilizados de forma análoga por bengaleses ou chineses em vez de serem usados por negros do Sul dos Estados Unidos, seus sons, embora igualmente não-ortodoxos pelos padrões europeus convencionais, seriam muito diferentes. O tom e a inflexão, e o padrão de expressão geral, não são, obviamente, os mesmos em Dacca ou Cantão e em Vicksburg;
  4. o jazz desenvolveu certas formas musicais específicas e um repertório específico. Nenhuma das duas coisas é muito importante. As duas formas principais usadas pelo jazz são os blues e a balada, a música popular típica, adaptada da música comercial comum. Os blues, um dos fundamentos extraordinariamente poderosos e frutíferos do jazz, são geralmente uma música de nove compassos, com a letra em couplet de pentâmetros jâmbicos (linha de verso branco) com o primeiro verso repetido. A balada pop varia, mas geralmente segue o padrão de trinta e dois compassos. Ambos, em formas simples e complexas, servem como base para variações musicais. O repertório é formado pelos ditos standards – temas que, por um motivo ou por outro, se prestam particularmente ao modo de tocar do jazz. Podem ter as mais diversas origens, sendo o blues tradicional e as músicas populares atuais as mais comuns. Os standards costumam variar de um estilo ou escola dejazz para outro, embora alguns tenham se mostrado adequados a todos os gêneros. O ouvinte, ao escutar uma banda anunciar um desses standards – seja um blues ou um pop passageiro que ganhou vida eterna ao conquistar um lugar como standard – pode estar quase certo de que a banda tem a intenção de tocar jazz. (Não que isso obrigatoriamente aconteça.) Uma vez um pouco mais experimentado, esse ouvinte será capaz de dizer com boa margem de segurança que tipo de jazz a banda pretende tocar: antigamente, Margie ou Avalon indicavam, quase que invariavelmente um número de Dixieland; Christopher Columbus, um número ao estilo dos anos 30; How High the Moon ou uma música de Cole Porter, jazz moderno. Hoje em dia já existe um corpo de composições mais elaboradas e de arranjos de jazz;
  5. o jazz é uma música de executantes. Tudo nele está subordinado à individualidade dos músicos, ou deriva de uma situação em que o executante era senhor. Um músico ou empresário que deseje formar uma banda de jazz não procura apenas tantos trompetes, trombones, palhetas, etc., porém, à maneira de um produtor buscando o elenco para uma peça, ou de um bom selecionador de time esportivo, por um Buck Clayton para o trompete, um Henry Coker no trombone, um Sonny Rollins no sax tenor. Até muito pouco tempo atrás o compositor, figura-chave na música erudita ocidental, era, com raras exceções, figura totalmente secundária emjazz. Seu lugar era tomado, se é que havia mesmo, pela figura modesta e corretamente denominada “arranjador”. O maestro permanece totalmente desimportante, pelo menos pelos padrões ortodoxos. A composição tradicional de jazz é simplesmente um tema para orquestração e variação. Uma peça de jazz não é reproduzida, ou mesmo recriada, porém idealmente, ao menos – criada e usufruída por seus executantes cada vez que é tocada. Dessa forma – mais uma vez idealmente -, não há duas execuções exatamente iguais de uma mesma música por uma mesma banda. E, se duas execuções de uma mesma música por duas bandas diferentes soarem idênticas, mesmo que o arranjo seja o mesmo, então uma delas estará deliberadamente imitando a outra. Cada músico de jazz é um solista, e da mesma forma que o freqüentador de óperas deve poder reconhecer uma Flagstad ou Schwarzkopf depois de um compasso ou dois de uma determinada ária, o ouvinte de jazz deve poder identificar um Armstrong, Hodges ou Miles Davis – ou, se for um expert, centenas de outros músicos menos tocados – depois de poucas notas.

É, portanto, natural, que a improvisação individual ou coletiva tenha uma importância muito grande para o jazz. Naturalmente, há muita baboseira a esse respeito. Os músicos de jazz costumam ter, freqüentemente, um repertório muito pequeno, e as possibilidades de improvisação sobre determinado tema são muito limitadas, para que não haja uma certa padronização de suas interpretações. Os músicos que lêem música encontram na pauta uma opção conveniente demais para deixar de usá-la. Da mesma maneira, é quase certo que mesmo performances improvisadas como as que eram as da antiga commedia dell’arte tenham se transformado, com o tempo, em rotinas, coleções de gestos padronizados que os atores “costuravam”, possivelmente registrando-os em uma anotação simplificada. Falar que o único jazz legítimo é o que nunca foi ouvido antes é romantismo bobo. (Afinal, o que há de errado com um músico que, tendo encontrado uma boa idéia e a tendo elaborado durante uma série de apresentações, decida ater-se àquilo que ele considera um solo adequado?) O jazz não é simplesmente música improvisada ou não escrita. Porém, em última análise, deve basear-se na individualidade dos músicos, e muito provavelmente em suas improvisações efetivas – e é preciso que haja espaço para improvisações.

E isso não chega a ser muito difícil, pois, mesmo lançando mão de grandes esforços técnicos, o jazz não pode ser adequadamente escrito. E, se pudesse, seria provavelmeme complicado demais para ser lido pelos músicos, ou até mesmo ser aprendido a partir da pauta. Uma música de jazz, a menos que seja gravada, copiada de ouvido, e checada com a gravação (que toma, em jazz, o lugar da música escrita), muitas vezes não pode ser reproduzida por mais ninguém, a não ser de maneira aproximada. Já foram feitos esforços nesse sentido, por exemplo, por tradicionalistas devotados buscando reproduzir com total fidelidade os sons de uma banda cultuada do passado. Porém, para a maioria dos propósitos do jazz – e especialmente para as execuções de rotina “arroz com feijão” – o esforço é grande demais para valer a pena. A maioria das músicas de jazz escritas, se existem, são portanto aproximações muito simples e sumárias, que deixam, no mínimo, espaço para tom, ritmo, inflexão e coisas do gênero, a cargo dos instintos jazzísticos dos executantes.

Não proponho discutir as tentativas já feitas de definir jazz em termos mais estreitos por exemplo, a que diz que jazz é improvisação coletiva, e que qualquer coisa que não possua essa característica “não é jazz”. Tais definições são geralmente manifestos a respeito do que o jazz deveria ser, não descrições do que realmente é. Também não há necessidade de se descrever a música popular influenciada pelo jazz. É extremamente improvável que qualquer homem ou mulher do mundo ocidental tenha escapado dos constantes bombardeios e barragens desse tipo de música, do teatro e do cinema, dos discos, conjuntos de música de dança, rádio e televisão. Embora repudiado por amantes do jazz, esse tipo de música costuma imputar-se a denominàção de jazz – geralmente adotando um dos vários nomes “de marca” como jazz, hot, swing, jive, cool, ragtime, blues, bop, síncope, ritmo, Dixieland, etc., sem falar nos nomes de danças. (Essas marcas saem rapidamente de moda: uma banda de dança que quisesse anunciar sua ligação com o jazz falaria, nos anos 20, emjazz ou síncope; já no final da década usaria os adjetivos hot ou dirty; nos anos 30, swing, e assim por diante.) Da mesma forma que sempre existiu um público ativamente oposto ao jazz, sempre houve um outro, incluindo os amantes de jazz, porém muito mais numeroso, que se sente fortemente atraído pela idéia do jazz. Como a música pop sobrevive a partir de sua venda no mercado, a marca do jazz se mostra, de tempos em tempos, como um ponto de venda importante.

Sob o risco de ofender os puristas, é preciso dizer que essa forma híbrida e diluída de jazz tem todo o direito de usar o epíteto. Embora o aficionado de jazz possa ter ataques com essa idéia, não se pode negar ao saudoso Paul Whiteman o direito de se considerar músico de jazz, a Al Jolson se chamar de cantor de jazz, ou até mesmo ao mais cretino dos roqueiros o direito de se arrogar cidadania no jazz, da mesma forma que o crítico literário não pode negar ao homem de negócios comum o direito de afirmar que escreve inglês. O mundo do jazz como fenômeno cultural dos nossos tempos inclui tudo que se autodenomine jazz, ou que empreste elementos suficientes da linguagem jazzística para ser afetado de maneira significativa por ela. Porém, da mesma forma que o crítico que escreve literatura não irá gastar tempo com cartas comerciais ou pieguices de cartões de Natal, o amante de jazz não precisa se ater muito aos aspectos técnicos da música pop, exceto na medida em que eles possam ter influenciado o tipo de jazz que seja, merecidamente, objeto de fruição e apreciação crítica.

Que é o Jazz ?

(Ulanov p.1-8)

Em The American Scene, Henry James falando das cidades americanas, disse: “Eis aí tudo; arrumai-o como puderes. Pobre querida beleza, má e atrevida; algo nela deve estar contido … ” O mesmo pode ser dito do jazz americano. Na superfície há desordem e conflito no jazz. Nenhuma definição plausível foi ainda encontrada para essa música. Ela resiste a definições de dicionário, seus músicos gaguejam nervosamente, e refugiam-se nas ambigüidades coloridas de sua gíria. Entretanto sua beleza pode ser registrada. O que tem de mau pode ser separado do que tem de atrevido. O processo é difícil como em qualquer arte, e no jazz duas artes, a de compor e a de executar, caminham juntas. Mas se nos aprofundarmos, não permitindo que as contradições e confusões aparentes nos desviem, muitas coisas se tornam claras, e o mistério que existe no fundo do sistema, será reconhecido como o mistério de tôdas as artes.

O córtex do jazz consiste em inúmeras camadas, ora bruscas, ora suaves, de estrutura complexa e difícil de separar. É composto da história da música, e dos diversos estilos de jazz. A princípio a história parece deslocada e os estilos contraditórios. Notamos uma confusa série de mudanças, nos lugares, nas pessoas, e nos estilos. Encontramos a música dominada pelos negros em Nova Orleães, pelos músicos brancos em Chicago, por pessoas importantes, mas aparentemente sem qualquer conexão, em Nova York. Descobrimos uma cisão desastrosa no jazz., inaugurada pela era do swing e intensificada durante os dias do bebop e do chamado progressive jazz. Mas então, observamos e ouvimos mais atentamente, e a ordem e a continuidade aparecem. Os americanos estão desde há muito tempo presos ao ciclo do contraponto entre êxito e fracasso, e a sua cultura reflete êsse ciclo vertiginoso. Com o jazz não se dá o mesmo. me não tem ciclos nem alternações, nem giros em espiral. Quer se adote o ponto de vista do historiador econômico, do antropologista cultural, ou do filósofo estético, não se encontrará uma única ponderação fácil para uma teoria no jazz. Enquanto a maior parte da América, entre crises e arrebatamentos, e mesmo um ou dois momentos de exaltação, encontra o seu caminho para o jazz, a história dês te se mantém curiosamente serena, caótica às vêzes, mas caminhando sempre para a frente, no que é, para uma forma de arte, quase uma linha reta.

Durante grande parte da sua história, o jazz, rejeitado em seu próprio país de origem, teve conscientemente que procurar sobreviver e conscienciosamente explicar e defender a sua existência. Desde a sua pátria primitiva, as encostas de Ozark, os bayous (braços de mar, lago ou rio, lamacento algumas vêzes, e onde não se nota nenhum movimento, a não ser quando há vento ou maré.) da Louisiana, os campos de algodão da Carolina e as plantações da Virgínia, através dos “bordellos” e “barrelhouses” (taberna de baixa categoria;’ estabelecimento onde há jôgo e bebida; bordel.) de Nova Orleães, até o seu atual florescimento, o jazz foi alternadamente condenado e mal compreendido. Ora abominado e desprezado, ora aclamado acima de seus méritos, êle tem tido uma vida solitária, mas cheia. Está ainda conosco e parece que permanecerá por muito tempo.

Apesar de tôdas essas controvérsias e contradições, dêsses altos e baixos, o núcleo do jazz tem permanecido constante, pouco abalado pelas extravagâncias de opinião, que lhe era ora simpática, ora hostil. O núcleo do jazz – ao contrário do seu córtex – contém o seu nervo central, a sua fonte de vida, e ali se encontram o seu mistério e significado. O seu núcleo é composto de melodia, harmonia, e ritmo, as três qualidades da arte da música que, como todos sabem, podem ser razoàvelmente definidas. Numa definição sem pretensões, poder-se-ia dizer que a melodia é qualquer sucessão de notas, a harmonia é qualquer simultaneidade de tons, e o ritmo é a média aritmética de notas e tons. Num exame mais meticuloso, entretanto, a melodia aparece como uma vasta variedade de coisas, que vai de um tema tão simples como o da canção “Yankee Doodle”, até uma das complexas construções melódicas de Arnold Shoenberg. Numa análise mais detalhada, a harmonia se nos apresenta como o arranjo vertical em uma fuga de Bach, ou uma estrutura compacta, baseada inteiramente em tons inteiros, no impressionismo de Debussy. Entretanto, por mais desconcertantes, que pareçam as complicações da melodia e da harmonia, elas são ainda mais fáceis de analisar e expressar, do que o ritmo ou qualquer uma das suas partes, e deve-se levar em conta que no jazz, o ritmo é a parte mais importante das três.

Antes de tentar uma definição resumida de jazz como um substantivo (ou discutir o uso errado de “jazz” como um verbo, ou de “jazzy” como um adjetivo) e dos vários têrmos corolários que explicam o significado dessa música, convém examinar as definições dos próprios músicos. As def;nições que se seguem foram feitas por músicos de jazz em 1935, quando sua música atravessava um período de reflorescimento, como conseqüência da nova moda do jazz, com o nome de swing. Benny Goodman era um sucesso e as jam-sessions (o verbo to jam significa improvisar; dai, jamsession, reunião de improvisadores.) tinham se tornado populares outra vez. Os próprios músicos encontraram dificuldade em dizer o que entendiam por swing, que era a versão 1935 de jazz, e que aliás não diferia muito da música de 1930 e 1925. Examinemos as definições:

WINGY MALONE: “Experimentar uma aceleração no tempo, embora mantendo o mesmo tempo”.

MARSHALL STERNS, JOHN HAMMOND (autoridades em jazz) e BENNY GOODMAN: “Uma banda executa o swing, quando sua interpretação coletiva é ritmicamente completa.”

GENE KRUPA: “Completa e inspirada liberdade de interpretação rítmica.”

JESS STACY: “Sincopatizações sincopadas.”

MORTON KAHN e PAYTON RE: “Sentir uma enorme quantidade de subdivisões em cada compasso, e tocar e inferir as cadências como as sentimos; tocar a música no tempo desejado, desde que a toquemos sentindo tudo isso dentro de nós.”

GLENN MILLER: “Qualquer coisa que se tem que sentir. Uma sensação que pode ser transmitida a outros.”

FRANKIE FROEBA: “Um tempo sustentado que proporciona leveza e repouso, e a sensação de que se está flutuando.”

TERRY SHAND: “Uma cooperação sistemática de dois ou mais instrumentos, emprestando sentimento ou sustentando a execução do solista.”

OZZIE NELSON: “Qualquer coisa de impreciso em que se percebem as pulsações de uma orquestra de danças. Para mim, é a consistência e a firmeza do ataque, pelo qual os instrumentos rítmicos combinam com os outros para criar entre os ouvintes o desejo de dançar.”

CHICK WEBB: “É como amar uma môça, ter uma briga com ela, e depois vê-la outra vez.”

LOUlS ARMSTRONG: “A maneira como eu acho que se deve tocar uma melodia.”

ELLA FITZGERALD: “Ora, bem – swing é – bem, uma espécie de sensação – hum – hum – ora, a pessoa simplesmente se deixa levar pelo swing!”

Estes músicos estavam procurando novas palavras com as quais pudessem classificar o beat (“beat”, como é aqui empregado, representa a cadência, o ataque, o ritmo, uma certa maneira de sincopar, e uma trama de tal forma complexa, que os músicos não americanos desistiram de traduzi-la. Assim sendo, quando “beat” aparecer no complexo sentido acima descrito, não será traduzido.) que é a base do jazz; não tinham têrmos adequados com que pudessem descrever a espécie de improvisação necessária para tocar-se “em jazz”.

O vocabulário simples, comprimido, e muitas vêzes elíptico do músico de jazz, diz muito acêrca da sua música. Faz nos aprender, por exemplo, que “jazz” é um substantivo, que não é música popular americana (contràriamente a uma opinião quase geral), que o músico de jazz está mais interessado na conotação rítmica da palavra, do que em qualquer outra coisa. Se alguém lhe disser que muitas pessoas acham que o têrmo “jazz” vem da abreviação fonética do nome de um “jazzman” chamado Charles (Charles, Chas, Jass, Jazz), êle não ficará nada interessado. Se lhe disserem que há muito de verdadeiro, na afirmação de que a palavra venha do francês jaser – divertir, regozijar – êle poderá acenar com a cabeça um pouco interessado, mas lhe perguntará:

“E que me diz do beat? Aprende-se com o músico de tazz, que swing não é mais um substantivo, não obstante ter sido originalmente usado como tal, no título de uma gravação de Duke Ellington em 1931, “It Don’t Mean a Thing If It Ain’t Got That Swing”, o que lhe dá uma espécie de endôsso ex cathedra. Aprende-se que swing é um verbo que determina o movimento, da mesma forma que o título de Ellington para outra canção, “Bouncing Buoyancy”, é a descrição do mesmo movimento, assim como os têrmos “jump” (saltar) e “leaps” (pular), assim como a descrição de jazz como “music that goes” (música que vai avante), da mesma forma que por volta de 1930 “solid” (sólido) era a palavra elogiosa que se usava em relação a uma execução ou a um executante, e que hoje foram substituídas por outras como “crazy” (doido), “craziest” (o mais doido), “gone” (ido), “the end” (o fim), e “cool” (fresco). Tudo isso são descrições do beat.

Examinando as próprias palavras dos músicos de jazz, é possível entrever o conceito sutil, turbulento e quase místico do espírito do jazz, da sua maneira de pensar e de sentir; tudo isto lá está e é assim que o músico de jazz o compreende. O jazzman tem a sua própria maneira de chegar ao coração da sua música, e dessa maneira formular a sua própria linguagem musical. Converte, assim, a linguagem musical num dialeto para si mesmo. É em seu vocabulário particular, verbal ou musical, que êle pensa, sente, ensaia, executa, grava, improvisa. e obtém o beat.

Para alcançar êsse beat tão difícil de conseguir, o jazzman fará qualquer coisa. Sem êle, nada pode ser feito. Desde que o consiga, êle estará tocando jazz, e isso já é uma realização grande e satisfatória. Quando um jazzman apanha uma melodia familiar, banal ou muito conhecida, altera o seu padrão rítmico para dar-lhe uma cadência firme, ainda que por vêzes monótona, modifica a sua melodia e transforma por vêzes os acordes, êle estará trabalhando livremente, fluentemente, e com tôda a espontaneidade que pode dar à sua música. E essa liberdade, essa fluência, e essa espontaneidade o conduzirão até ao jazz; e êle estará então apto a achar um lugar ou a juntar-se a uma dessas bandas cujas incríveis paródias do jazz, são freqüentemente mais populares do que o jazz autêntico. É pela sua compreensão de certos valores precisos, que o músico de jazz concebeu, organizou, e desenvolveu a sua arte. Foi “hot” (violento), tornou-se “cool” (calmo). Saltou e vibrou; vagou sem objetivo. Tomou emprestado. Originou. Efetuou uma mudança, uma verdadeira transformação; as convenções herdadas de seus antecessores, foram gradualmente restauradas, reorganizadas e enfim reconstruídas como uma nova expressão. E possível que os músicos de jazz tenham simplesmente redescoberto um agente dominante da música: o executante improvisador. Sem se dar conta, o jazzman talvez tenha voltado aos primórdios da música, servindo-se das mesmas raízes criadoras que alimentaram a antiga música grega, cântico singelo, a música da época barrôca, e seus próximos sucessores e antecessores. É sabido que os compositores dos séculos XVII e XVIII eram improvisadores, e que quando levavam suas composições a outros músicos, deixavam muito à discrição dos executantes, como fazem em nossos dias os arranjadores de uma banda de jazz.

Mas o músico de jazz trouxe mais do que processos, concepções de composição e improvisação à sua música. Foram desenvolvidas técnicas que alargaram seus recursos e intensificaram a execução de certos instrumentos, muito além de seu uso em qualquer outro gênero de música. As novas côres que vieram enriquecer os instrumentos de solo, as várias combinações e os demais instrumentos, são totalmente diferentes de quaisquer outras em música. Novas tessituras surgiram de uma certa concepção de tonalidade e de registro, que embora nada tenham de originais em si, são inteiramente novas em sua aplicação. O músico improvisador tem no jazz uma posição diferente, mais responsável e recompensadora, do que o improvisador na música antiga e na música folclórica. A base rítmica da música foi reinterpretada, tomando a pulsação central mais primitiva do que jamais o fôra na música ocidental, e mais sofisticada em sua variação.

Aí vai, então, uma possível definição de jazz: é uma música nova, de caráter rítmico e melódico diferente, que requer uma improvisação constante – de menor ordem quando se modifica a acentuação e o fraseado de uma melodia; de maior ordem quando se faz uma composição progressiva, à proporção que se interpreta. Ao se criar jazz, uma melodia ou seus acordes fundamentais podem ser alterados. Os valores rítmicos das notas podem ser prolongados ou abreviados de acôrdo com um sistema regular, sincopados ou não, ou mesmo pode não haver um padrão consistente de variações rítmicas, contanto que um beat invariável permaneça, implícito ou explícito. A cadência consiste geralmente em quatro semínimas por compasso, assegurando uma sólida base rítmica à improvisação dos solistas ou de conjuntos que toquem oito ou doze compassos, ou todo múltiplo ou submúltiplo dêsse número. Estes são os meios. Os fins são aquêles de tôdas as artes, a expressão do universal e do particular, do específico, do indireto, e do intangível. No curso de sua curta história, o jazz tem ficado restrito a pequenas formas, e tem muitas vêzes procurado o efêmero e o trivial; mas tem também se esforçado por alcançar as sensações duradouras e as conclusões cheias de significação. Com bastante freqüência os músicos de jazz, visam e obtêm um efeito afrodisíaco; êles têm prestado culto na sua música, ora devota ao Deus Onipotente, era a deuses incógnitos. Da mesma forma que os poetas e os pintores, êsses músicos têm muitas crenças, e suas doutrinas são inúmeras; mas estão todos unidos por uma convicção, a de haver encontrado uma forma criadora para si mesmos, sua época, e o lugar onde vivem.

Logo no início. de Gradus ad Parnassum, o diálogo oferecido como um estudo do contraponto, por Johann Josef Fux em 1725, o mestre de música, Aloysius, adverte o estudante Josef: “Você deve procurar lembrar se sentiu uma forte inclinação para essa arte, mesmo na infância”. E o estudante respondeu: “Sim, profundamente. Mesmo antes de ser capaz de raciocinar, sentia-me possuído por êsse estranho entusiasmo, e voltei então os meus pensamentos e a minha sensibilidade para a música. E agora o ardente desejo de compreendê-la me domina e me arrasta quase contra a minha vontade, e noite e dia deliciosas melodias parecem soar à minha volta. Assim sendo, creio que não tenho mais razão para duvidar da minha inclinação. Nem mesmo as dificuldades do meu trabalho conseguem desencorajar-me, e espero com o auxílio de boa saúde, chegar a dominá-las”.

Muitos músicos de jazz já leram Fux, assim como o fizeram antes deles Haydn e Beethoven, embora a aplicação para aqueles fosse menos imediata. Entretanto, eles compreenderam o “estranho entusiasmo” .do aluno; aquilo, disseram os jazzmen, era a experiência dêles, “seu desejo ardente”. Seguindo a sua “inclinação”, os músicos de jazz nem sempre tiveram o auxílio de boa saúde; muitos dêles faziam alarde de sua obstinação em levar uma vida desarrazoada, e sofreram as conseqüências desses hábitos, tanto física como moral. mente. Sua música reflete tudo isso, e às vêzes, como resultado, torna-se barulhenta e grotesca. Mais freqüentemente, entretanto, ela possui plenitude e riqueza de expressão. Lentamente, claramente, a música vai sazonando, e para ela, com ela, e por ela, os músicos fazem outro tanto.

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