Estilos de Jazz III

Quadro 1: Evolução do jazz (com o blues como espinha dorsal dessa evolução).

1960 – Free Jazz

No jazz dos anos 60 – o chamado free jazz-, são novidades:

  1. entrada no campo livre da atonalidllde;
  2. dissolução da simetria rhmica, do “metro” e do beat;
  3. incorporação de elementos musicais de diversas . culturas internacionais;
  4. maior intensidade na execução instrumental, chegando quase ao êxtase – alguns músicos do free jau falam, inclusive, no “culto da intensidade”; e
  5. o ruído passà a fazer parte do “som musical”.

No início dos anos 60, verificou-se no jazz o mesmo fenômeno que ocorrera 50 anos antes na música de concerto; algo que Tristano havia previsto em 1949 em sua lntuition, e que foi preparado, no decorrer dos anos 50, mais particularmente por George Russell e Charles Mingus: a explosão da atonalidade. Os pontos de apoio auditivos tradicionais haviam sido desfeitos e os resultados iniciais chocavam incrivelmente o grande público. Uma música violenta, duramente agressiva, envolta num pathos em parte extramusical, deixava perplexo O público acostumado a saborear Oscar Peterson e “Modern Jazz Quartet”. Parll a jovem geração de instrumentistas, no entanto, o novo jazz representava uma libertação, urn desligamento total de formas e fórmulas que se repetiam automaticamente, um radical rompimento com clichês e convenções que faziam parte do mundo da tonalidade. O jazz penetrou, portanto, num campo livre e amplo, voltando a ser, assim, o que era nos anos 20, quando o mundo dos brancos o descobriu: uma grande, louca, tensa e incerta aventura. E finalmente outra vez, como naquela’ época, uma improvisação coletiva.

♫Chromatic Universe – Part 2 (George Russell)

A concepção de “atonalidade” no jazz se diferencia fortemente da conhecida na música européia de concerto. Na chamada música erudita, a diluição da tonalidade conduziu a composição musical do início do século a um outro esquema também organizado, o dodecafonismo e depois ao serialismo. O processo de composição com doze notas substituiu o da escala tonal. Mesmo quando, na moderna música de concerto, passou-se a fazer uso de elementos aleatórios, eles sempre compareciam ligados a esquemas básicos fornecidos pelo compositor. No free jazz da vanguarda nova iorquina de 1965 se desconhecia e se rejeitava mesmo qualquer tipo de esquematização, assim como qualquer ponto de apoio convencional. A linguagem jazzística tinha abandonado a linearidade, bem como qualquer espécie de compromisso formal. Ela era completamente espontânea e não-acadêmica, indo bem mais adiante do que o conceito de atonalidade representava até então. Por essa mesma razão, a maioria dos músicos de jazz pouco se interessava, àquela altura, com o que vinha acontecendo na chamada música erudita, seja tradicional ou de vanguarda. Archie Shepp chegou a dizer: “Where my own dreams sufficed, I disregarded the western musical tradition alI together”.

Inicialmente se poderia imaginar que o radicalismo atonal teria substituído um sistema harmônico organizado pelo “nada”.

Apesar de sua curta história, porém, o jazz possui uma “tradição atonal” mais antiga do que a música européia de concerto. Os shouts, os field hollers, o blues arcaico cantado nas Fazendas dos Estados do Sul e quase todas as préformas do jazz do século passado, que se mantiveram vivas ainda no atual eram “atonais” – talvez pelo fato de que esses cantores e instrumentistas não tivessem tido a oportunidade de um contato mais íntimo com o sistema tonal europeu. Do próprio Louis Armstrong existem ainda hoje gravações, consideradas entre as suas mais belas – como Two Deuces, com EarI Hines – nas quais, em vários momentos, aparecem soluções harmônicas que escapam às regras convencionais da harmonia tradicional.

Nos primeiros momentos do free jazz, Marshall Stearns já dizia: “e claro que o músico de jazz poderia adotar os recursos atonais perfeitamente entoados da música de concerto do início do século; ele preferiu, contudo, buscar a sua libertação harmônica numa fonte que lhe era mais familiar e até mais antiga: o street cry e o field holler. Hoje pode-se notar, claramente, que a música de Ornette Coleman, Archie Shepp, Pharoah Sanders e Albert Ayler tem muito mais a ver com a atonalidade do fieid cry e do blues arcaico do que com a da vanguarda intelectual da segunda década deste século. Ornette Coleman, por exemplo, só teve conhecimento das experiênças atonais da música erudita por volta de 1959/60, época em que conheceu John Lewis e Gunther Schuller; nessa ocasião, a sua contribuição musical já estava dada e era conhecida internacionalmente.

♫Sadness (Ornette Coleman)

Na organização harmônica do jazz tradicional é que residia o seu aspecto mais europeu. Leroi Jones – hoje Ameer Baraka – chega a dizer: “No momento em que o sistema tonal foi jogado fora, o jazz se distanciou consideravelmente do continente branco, tornando sua música, assim, mais negra do que nunca”.

Se considerarmos, porém, o jazz como urn dos fenômenos culturais~spirituais importantes de nosso século, vamos observar que sua libertação do princípio harmônico funcional encontra um sem-número de paralelos em outras manifestações artísticas atuais. Na literatura, por exemplo, a tendência anti~amática ou anti-sintática qUe se observa na obra de autores como Arno Schmidt, Butor, Heissenbüttel, Raymond Queneau, em toda poesia concreta e já antes em James Joyce e muitos outros, em diversos idiomas internacionais, corresponde em detalhe ao processo anti-harmônico que se presenciou no free jazz.

Como todo novo estilo, o free jazz apresentou também uma nova concepção rítmica. Todos os estilos do jazz que se conheciam, do New Orleans ao hard bop, se assentavam em dois elementos básicos: o “metro” [pulso] e o beat[compasso] O “metro” é a pulsação, espécie de pilares situados em distâncias iguais e regulares, sobre os quais se formam as diversas fórmulas rítmicas. Tais fórmulas são determinadas pelo beato Apoiado na regularidade do “metro” (daí metrônomo, instrumento que funciona semelhantemente ao pêndulo de um relógio), o beat, acentuando determinados pontos dessa pulsação, forma as diversas células rítmicas básicas que se conhece no jazz tradicional. A maioria dessas células eram binárias. (2/4) e quartenárias (4/4), mas havia também movimentos valsantes ternários (3/4), assim como, na década de 50, formações de compass~s mistos: 2/4 + 3/4 = 5/4 ou 3/4 + 4/4 = 7/4.

♫Take Five (Dave Brubeck)

Esses dois elementos básicos do jazz tradicional foram se desintegrando à medida que o free jazz tomava forma. Com o tempo, no início dos 60, desapareceram esses pontos de apoio. As estruturas rítmicas passaram a ser autônomas, não raro se contraponteando e destruindo, assim, qualquer idéia de seqüência ou desenvolvimento rítmico linear.

Tão importante quanto as inovações harmônicas e rítmicas do free jazz foi a sua abertura a outros tipos de música e culturas internacionais. Se o jazz nasceu do encontro do negro com o branco, a maior parte da contribuição deste último era a tradição musical européia. A música pianística do fim do século passado muito contribuiu para a formação do ragtime. Os músicos do New Orleans estavam muito ligados à ópera francesa, à música de circo espanhola e à marcha alemã. Bix Beiderbecke e seus colegas do Chicago descobriram Debussy. Os arranjadores do swing fizeram muito uso dos recursos de orquestração da música sinfônica européia de concerto, do fim do século passado e início deste. Até o fim do desenvolvimento do cool jazz se conhecia e se tinha provado tudo que havia de música entre o barroco e Stockhausen. Esse segundo pólo, a música européia, que complementava a evolução do jazz, parecia esgotado. Já por razões extramusicais – raciais, sociais e políticas -, o músico de jazz passou a substituir os elementos básicos desse “segundo pólo” por elementos de culturas extra-européias: hindu, japonesa, africana, árabe. Particularmente as culturas árabe e hindu chamavam ,a atenção de muitos músicos de jazz, os quais se ligavam ao islamismo, isto já na metade dos anos 40, ou seja, na época em que nasceu aquilo que chamamos de “jazz modemo”. Alguns se tornavam muçulmanos e adotavam nomes árabes, como, por exemplo, o baterista Art Blak.ey, que passou ‘a se chamar Abdullah Ibn Buhaina ou o saxofonista Ed Gregory que adotou o nome Sabib Shibab. ‘Esse distanciamento da religião dos brancos representava para muitos uma espécie de desligamento do próprio homem branco. O escritor e poetà negro James Baldwin escreveu: “Todo aquele que pretender ser um ente moral e humano tem que se libertar, em primeiro lugar, de todas as proibições, crimes e hipocrisias da igreja cristã. Só é positivo e útil o conceito de Deus quando nos engrandece, nos liberta e nos faz capazes de amar”. Segundo milhões de negros americanos, depois de 200 anos de fé e inúteis tentativas, este não é o caso do Deus cristão. Por essa razão, diz Baldwin, “já é tempo de o deixarmos de lado”. A identidade com o islamismo e a conseqüente fascinação ante o tipo de expressividade musical árabe se expressam, claramente, na música de instrumentistas como Yusef Lateef, Ornette Coleman, John Coltrane, Randy Weston, Herbie Mann, Art Blak.ey, Roland Kirk, Sabib Shihab e Don Cherry, assim como dos europeus George Gruntz e Jean-Luc Ponty.

O que fascina o músico de jazz da música hindu é, particularmente, a riqueza de seu ritmo, baseado nas chamadas talas e ragas. As talas são séries ou ciclos rítmicos, incrivelmente diversificados: variam de 3 a 108 batidas. Convém observar que tanto o instrumentista, como, o ouvinte hindu, dispõem da capacidade de acompanhar rigorosamente o desenvolvimento dessas talas, ainda que tenham 108 batidas. Em geral, essa série se compõe de vários grupos de batidas; uma tala de 10 beats, por exemplo; poderia ser associada das seguintes maneiras: 2-3-2-3, 3-3-4 ou 3-4-3. Desde que se leve em conta essas agrupações rítmicas, a improvisação é livre. A primeira batida de cada tala é uma espécie de ponto de encontro dos instrumentistas, os quais, sem abandonar o esquema rítmico, se distanciam consideravelmente uns dos outros. Por essa razão, essa primeira batida tem até urn nome especial: sam. A chegada ao sam representa uma espécie de “alívio” após o intrincado contrhponto de vozes. A assimilação dessa nova concepção rítmica é que levou o músico de jazz a se libertar dos esquemas simétricos herda … dos da tradição musical européia.

♫Tabla (Zakir Hussain)

A raga, por outro lado, é um princípio de organização de alturas, portanto melódico, dentro de nossa. denominação convencional. Mais do que isso, porém, a expressão raga inclui’ uma série de conceitos que, na linguagem ocidental, chamamos de tema, tonalidade, afinação, frase e até mesmo forma. A raga determina, por exemplo, que uma nota não seja executada enquanto uma série de outras não foram ouvidas, o que estabelece uma certa relação com a música dodecafônica. Existem esquemas de raga que só podem ser executados pela manhã, outros à noite, outros ainda apenas por ocasião de lua cheia, assim como alguns para a meditação religiosa. Os dois instrumentos principais da música hindu são a sitar e a tabla. A sitar que hoje se conhece foi desenvolvida mais ou menos há 700 anos; ela possui 6 ou 7 cordas principais, que fazem soar, pela ressonância, 19 outras. A tabla é composta de dois tambores sendo que o da direita está afinado na tonalidade da tônica ou dominante. Durante a execução e mediante o uso de uma pequena chave essa afinação é mudada. O da esquerda é uma espécie de tambor-baixo – banya -, cuja sonoridade se modifica, na medida em que o executante, com a mão esquerda, calca diferentes pontos do couro. Como se vê, esses tambores ocupam, simultaneamente, duas funções: a rítmica e a melódica. Vários percussionistas modernos estudaram em Calcutá e Bombaim, com músicos da escola de Ravi Shankar, o mais importante instrumentista hindu da atualidade.

♫Gat Kirwani (Ravi Shankar)

A abertura demonstrada por dezenas de instrumentistas, compositores e arranjadores do jazz com relação às chamadas “culturas exóticas” foi incomparavelmente mais ampla e conseqüente do que ocorreu com compositores “eruditos” europeus. Debussy, Messiaen, Roussel ou Blacher fizeram uso, em suas obras, de muito material sonoro originário da lndia, da China e de Báli; essas experiências, porém, resultam pálidas e até mesmo ingênuas, se comparadas com as que fizeram dezenas de músicos de jazz nas décadas de 50 e 60, seja pela sua identidade e engajamento, seja pela expansão que deram a esse material folclórico. Para se ter uma idéia basta ouvir as peças que Don Elis escreveu para a sua big band com base em talas hindus, tais como New nine ou 3-3-2-2-2-1-2-2-2; o mesmo acontece com Miles Davis e Gil Evans na versão “flamenco-jazz” do Concerto de Aranjuez, de Rodrigo; com Yusef Lateef, em seu disco “A flat, G flat and C”, em que ele mistura a forma clássica do blues com material folclórico japonês, chinês e egípcio; ou ainda com Sahib Shihab, Jean-Luc Ponty e George Gruntz, no disco “Noon in Tunísia”, de que participam músicos beduínos.

Os músicos do novo jazz transformavam a música do mundo em swing. Eles fizeram tudo isso com o anseio de libertação, aventura e descobrimento de uma forma plena e quase mística de amor, como se pode observar pelos próprios nomes que deram a seus discos e composições: Albert Ayler – Spiritual Unity e Holy Ghost; Don Cherry Complete Communion; Carla Bley; – Communication; Schlippenbach – Globe Unity; Yusef Lateef – Try Love; Ornette Coleman – Peace; John Coltrane – Love, Love Supreme e Ascension. Sun Ra, por seu turno, gravou com a sua “Solar Arkestra” as peças Sun Song, Sun Myth e Nebulae, que fazem parte de sua obra Heliocentric Worlds.

♫Love (John Coltrane)

Com a assimilação de experiências musicais de outras culturas, um novo elemento foi agregado, definitivamente, ao jazz: o ruído. Nas diferentes “cultut;ls exóticas” do mundo existem há séculos tipos de sonoridade que, para o ouvinte europeu ou ocidental comurn, até bem pouco tempo atrás não podiam ser consideradas como “musicais”. Motivados por essa nova gama de sonoridades-ruído, o músico de jazz passou a forçar a técnica do instrumento, chegando a resultados que nada mais têm a ver com o seu som característico original. Saxofone passa a soar como se tivesse um destorcedor eletrônico, trombone como o escapamento de um motor à explosão, pistão como folhas de zinco se retorcendo, piano como arame se rompendo, vibrafone como vento soprando em folhas de metal, formando tudo isso junto, quando em improvisações coletivas, blocos sonoros aparentemente antediluvianos …

Na realidade, fisicamente, não existe diferença entre som e ruído e hoje, artisticamente, também não. Stockhausen diz: “Sonoridades que, antigamente, eram classificadas como ruído, hoje fazem parte do vocabulário musi alo .. Som e ruído são música. Efeitos sonoros que o ouvido moderno capta, feitos e usados hoje, são música de hoje, de nossa época e não música do futuro ou de amanhã. .Não há nada mais natural do que transformar o arsenal sonoro que já se conhece de resto, como sempre se fez na história da música”. Na realidade Stockhausen, ao usar essas palavras, pensa em música eletrônica, mas elas se aplicam a qualquer tipo de realidade acústica, seja qual for a sua origem.

Essa ampliação das possibilidades acústicas se tomou: para muitos músicos, uma tarefa das mais importantes. Na revista de música vanguardista inglesa Mkrophone, em que muitos músicos costumam fazer os maiores e mais variados depoimentos sobre a pesquisa sonora de hoje, escreveu o baterista Tony Oxley apenas estas palavras: “A minha atividade mais importante é a ampliação do meu vocabulário”

Em poucos anos, o free jazz preencheu uma rica e va· riada escala de formas de expressão e emoções humanas S errado pensar nele apenas como veículo de protesto, ódic e cólera. Um grupo pequeno de críticos e músicos nova-ior· quinos assim o consideravam, mas hoje está provado que eles não tinham uma visão completa do fenômeno. Juntamente com o protesto de um Archie Shepp, havia a mística e a quase religiosa interpretação de um Jobo Coltrane, a alegre e popularesca música de urn Albert Ayler, a frieza intelectual de urn Bob James, o senso de humor de Sun Ra e a delicada sensibilidade de Carla Bley.

Nos anos em que o “moderno jazz” se desenvolveu e afirmou, digamos entre 1955 a 1967, estas foram as datas e fatos mais importantes:

  • 1955 Miles Davis coloca o sax-tenor John CoItrane em seu quinteto.
  • 1957 Ornette Coleman forma, com o pistonista Don Cherry, um quarteto em LosAngeles. Cecil Taylor se apresenta no festival de Newport.
  • 1959/60 O quarteto de Ornette Coleman – do qual fazem parte também DonCherry, Charlie Halden e BiIly Higgins – toca durante vários meses, com sucesso, no “Five Spot” de Nova Iorque.
  • 1960 John CoItrane toca pela última vez com Miles Davis e, pela primeira, com um músico do free jazz: Don Cherry.
  • A expressão free jazz é usada, pela primeira vez, como título de um LP de Ornette Coleman. Nesta gravação, feita por um duplo quarteto, se encontram também, pela primeira vez, Ornette e Eric Dolphy.
  • Os “Rebels” organizam em Newport o “Rival Festival”, como protesto ante o famoso e já “estabelecido” “Newport Jazz Festival”, de George Weins. No “Rival”, tocam juntos Ornette Coleman, Charles Mingus, Kenny Dorham e Max Roach. Na Polônia, na Cracóvia, forma-se o primeiro grupo europeu diretamente influenciado por Coleman, o “Muniak-Stanko-Quartet”.
  • 1961 Coltrane presta o seu primeiro tributo à música árabe e africana: Olé Coltrane e Africa Brass. Ornette Coleman dá um concerto no “Town Hall”, de Nova Iorque, com o seu trio (David Izenzon no contrabaixo e Charles Moffett na bateria), abandonando, logo em seguida – e por dois anos – o contato com o público.
  • 1962 Pela primeira vez, Cecil Taylor encontra Albert Ayler e este Sunny Murray, no clube “Montmartre”, de Copenhague. A partir desse ano, os mais importantes músicos do free jau passam a vir regularmente à Europa. O free jazz passa a ser o primeiro estilo jazzístico cuja história viveu importantes acontecimentos no continente europeu.
  • 1963 Retirado da vida artística por alguns anos, apresenta-se de novo ao público, juntamente com Don Cherry, o sax-tenor Sonny Rollins. Com isso, a figura mais exponencial do estilo anterior, o hard bop, adere ao free jazz. Em Nova Iorque, forma-se o “New York Contemporary Five”, do qual fazem parte Don Cherry, Archie Shepp e John Tchicai. Nesse ano, o grupo se apresenta também na Escandinávia. Coltrane presta tributo à lndia: lndia, com Eric Dolphy no clarone.
  • 1964 Eric Dolphy morre em Berlim. George Russell se apresenta no Festival de Jazz de Berlim e, em seguida, por toda a Escandinávia, onde forma, inicialmente, um septeto e, em seguida, uma big band. Don Cherry se estabelece na Europa. Forma-se em Nova Iorque o “Jazz Composers Guild” e, de 28 a 31 de dezembro, organiza-se nessa cidade o primeiro “Free Jazz Festival”, com a participação de Cecil Taylor, Archie Shepp, Bill Dixon, do “New York Art Quartet”, da “Jazz Composers Orchestra” e outros. Esse foi o primeiro festival inteiramente dedicado ao novo jazz.
  • 1965 Ornette Coleman se apresenta novamente ao público, no Festival de Jazz de Berlim, onde é ovacionado. Leroi Jones forma no Harlem o “Black Arts Theatre”, com o objetivo de proteger e incentivar a arte negra, particularmente o jazz. John Coltrane amplia seu grupo, engajando Archie Shepp, Pharoah Sanders e Rashied Ali. Coltrane grava “Ascension” e Ornette Coleman diversos discos em Londres e Estocolmo.
  • 1966 John Coltrane e Ornette Coleman dominam os pólos principais do jazz em todo mundo. Coleman é eleito “o músico do ano” pelos leitores da revista Down Beat. Don EIlis apresenta, com sucesso excepcional, a sua nova big band, no festival de jazz de Monterey, na Califórnia. Down Beat: “Um novo estilo de jazz grande-orquestral”. Cecil Taylor se apresenta com o seu “Unit’ na Alemanha e em Paris.
  • 1967 A 11 de julho morre em Huntington, N. Y., John Coltrane. A gravadora alemã “M. P. S.” lança uma série de discos denominada “Jazz meets the world”. Nessa coleção, pela primeira vez, se apresentam dezenas de músicos de jazz atuando conjuntamente com os mais representativos instrumentistas das chamadas “culturas exóticas”: do mundo árabe, lndia, lava, Báli, Japão, Brasil, do flamenco espanhol etc.

Ornette Coleman e John Coltrane se firmaram como as figuras centrais do novo jazz (mais informações sobre ambos serão dadas no item que lhes é dedicado). Enquanto alguns poucos críticos e parte dos ouvint ~s ainda usavam a palavra “caos” para identificar o novo jazz, este ganhava cada vez mais público e um número crescente de instrumentistas se identificava com sua linguagem. Saber distinguir “liberdade” do “caos” e nela identificar uma nova música é um processo inicialmente difícil, que se repetiu inúmeras vezes na história da música ocidental. A própria expressão “música nova” foi usada três vezes na chamada música erudita para especificar novos fenômenos artísticos. A primeira vez se deu em 1356 com o movimento musical liderado por Guillaume de Machaut, a “Ars Nova”.

Dois séculos e meio mais tarde, surgia em Florença “Le Nuove Musiche” para identificar a música monódica do “Stilo Rappresentativo” dos compositores Orazio Vecchi e Claudio Monteverdi. Em ambas as ocasiões, os “mestres de música'” das cortes e da igreja já falavam na erupção do caos na música. Observações desse tipo se repetiram constantemente daí para cá. Johann A. Hiller falava, “horrorizado”, na “crueldade” da música bachiana; instrumentistas italianos devolviam a Mozart os seus primeiros quartetos, pois a edição tinha “erros demais”. Como dizia urn historiador, “mal sabiam esses músicos que justamente esses erros é que constituíam a revolução mozartiana”. Sobre a abertura para a ópera Fidélio, de Beethoven, escreveu urn crítico: “Todos os conhecedores e amantes da música foram unlnimes em afirmar que jamais acontecera na história da música algo tio estridente, desorganizado e prejudicial ao ouvido do que essa Abertura”. Brahms, Bruckner e Wagner foram tam~m, inúmeras vezes, classificados de “caóticos”.

Pela terceira vez surgiu, neste século, a expressão “música nova”. Após os enormes esclndalos do início do século, com a Sagração da Primavera de Stravinsky, em Paris ( 1913 ); o Pierre Lunar e as 5 Peças para Orquestra, de Schõnberg (Opus 16); e a premiere de Pelléas el Mélisande de Debussy, em 1902 (“música cerebral!”, “mentalidade niilista!”) – a técnica de composição desses autores é usada hoje nas partituras de música de fundo dos mais vulgares filmes hollywoodianosl -, surgiu na década de 60 a “Neue Musik”. para caracterizar a obra dos jovens compositores imediatos seguidores de Schõnberg, Webern e Berg. Essa música, que há dez, quinze anos soava excessivamente “abstrata” ou “amusical” é chamada hoje simplesmente de “vanguarda histórica”.

Assim soava também na época, sobretudo na Europa, a “nova música” de Nova Orleans. “Música caótica, selva’gem, erupção rebelde de um país confuso”, como diziam alguns. Na mesma Europa, na passagem da década de 50 para a de 60, essa música era sinônimo de ordem, alegria inganua e saudável para o “bom menino” ouvir …

Em 1943, quando surgiu o bebop, não apenas aficionados, mas também críticos afirmavam unanimemente: “Agora surgiu definitivamente o caos, o jazz acabou … ” Hoje os coros de pistões e vocais de Dizzy Gillespie soam para nós tão comuns e alegres como When the saints go marching in

Como se vê, a expressão “caos” é um estribilho que esteve e sempre estará ligado à renovação musical. O artista criador é aquele que vê a realidade de sua época antes dos outros e a apresenta em forma de música; até que todos os seus contemporlneos assimilem a sua contribuição sempre leva algum tempo. Isso aconteceu igualmente com o free /azz, sobretudo porque ele também alterou a técnica de ouvir música. Enquanto no jazz tradicional o ouvinte possuía uma série de moldes auditivos, nos quais se pautava a execução musical, parece que com o free jazz a coisa se inverteu. Dada a liberdade total de improvisação, agora é o ouvinte quem tem que seguir a invenção do instrumentista, participando assim, mais ativamente, da realização musical.

1970

Na história do jazz, o início de cada década tem representado também, na maioria das vezes, o inicio de urn novo estilo musical. O mesmo .se faz sentir agora, nos primeiros anos da década de 70. Não se trata aqui de um estilo revolucionário como foi o bebop, por exemplo, para os anos 50, e o free jazz para 60. O novo estilo dos anos 70 se desenvolve, organicamente,. a partir do anterior, ,na mesma proporção em que o cool Jazz se originou do bebop, ou o estilo Chicago a partir do jazz de Nova Orleans. A transformação estilística que se operou nos exemplos citados não só se repete para os anos 70, como tamb6m apresenta características semelhantes. O cool jazz representou urn “esfriamento” do nervoso bebop; o estilo Chicago foi, praticamente, uma versão classicista do jazz de Nova Orleans. Assim, o jazz dos anos 70 caminha no sentido de um abrandamento do free jazz, operando também com sua bagagem de uma forma, porém, não menos criativa. Como nos casOs anteriores essa transformação, esse esfriamento do estilo anterior, se processa natural e quase imperceptivelmente para o público de jazz. Hoje, porém, já se nota claramente a diferença entre uma música de uma década e outra. Nota-se no jazz de hoje a assimilação da estrutura e das características atonais do Iree jazz, assim como a presença de elementos do jazz tradicional, da música européia de vanguarda, de música e culturas exóticas – particularmente hindu -, do romantismo europeu, do blues e do rock. “Não se trata mais apenas de se tocar livremente, agora tudo está junto e misturado”, diz o clarinetista Perry Robinson. Evidentemente, e isto é o novo, todos esses elementos sofreram um processo de diluição e integração. Eles não vivem aut&nomos e independentes, mas formam um novo bloco sonoro. Interessante é notar também que esse novo estilo não tem um nome especifico – pelo menos, por enquanto (às vezes é chamado de electric jazz). Alguns observadores criticam certos músicos atuais, por utilizarem em suas execuções elementos de outras músicas, achando que se trata de uma forma de uso “superficial”. Esses criticos, entretanto, ainda não assimilaram o que se está passando, pois não se trata aqui de uma “fiel reprodução” de outros fenômenos musicais porém da formação de urn novo estilo, baseado na’ integração de diversas experiências musicais, a partir de uma visão crítica e numa técnica de execução moderna. O mesmo aconteceu no início da década anterior. Coma erupção do jazz livre vários críticos o consideraram como um atestado de óbito do próprio jazz. Ele não só viveu sadiamente como também sugeriu a formação de um novo estilo para a década de 70.

Dois aspectos pretendemos esclarecer aqui que nada tem a ver com fenômenos já tratados ou oriundos de outras músicas: aquilo que chamamos de “estruturação;’ na nova “liberdade” é o rock.

Seguidores e praticantes do jazz sempre souberam que a denominação free, que lhe foi dada na década anterior, nunca foi sinônimo de caos ou arbitrariedade completa. Hoje se compreende ainda mais facilmente o que se queria dizer com “liberdade” nesse tipo de música. Libertar-se de certos determinismos ou moldes que se repetiam quaseautomaticamente não significa desordem. Tomemos como exemplo a harmonia: quando o músico de jazz começou a praticar o atonalismo, isto não significou que ele tivesse deixado de “pensar harmonicamente”. Ele apenas se libertou de certos encadeamentos e seqüencias harmônicas estabelecidos e típicos da tonalidade. A ruptura com o círculo vicioso da harmonia tradicional permitiu-lhe ademais optar por soluções harmônicas ainda mais “belas”. pois ele se descomprometeu quanto à. obrigatoriedade de servir-se de encadeamentos-padrão.

O mesmo aconteceu com o ritmo. Não foi gratuitamente que se rompeu com a regularidade, do “metro”, como davam a entender os primeiros eventos desse tipo de música. Essa regularidade foi desfeita porque, num dado momento da história do jazz, os seus mósicos acharam por bem colocar em questão essa obrigatoriedade de repetição da célula (conceito) beato Na realidade, os 60 anos de regularidade métrica do jazz eram praticamente impostos ao artista. A partir da década de 60 nada mais no jazz é “obrigatório”. Agora, pelo menos, se pode optar entre um efeito rítmico regular e outro não regular. O free jazz foi um processo de autolibertação. Hoje, por&n, o músico é ainda mais livre e a opção é total; ele pode fazer uso, inclusive, de recursos que para o free Jau eram verdadeiros “pecados mortais” : terças, acordes consonantes, motivos valsantes, determinada seqüência rítmica ou harmônica etc.

Na contracapa do LP do conjunto alemão-holandês “Association P.C., conjunto este plenamente integrado na realidade sonora atual, escreve A. Hebgen: “Depois que o conceito free significou na década de 60 ‘aversão completa’ à tonalidade, à melodia, ao metro – portanto, também quase um preconceito -, os grupos da década de 70 chegaram a um novo tipo de ‘liberdade’ musical. livre não significa mais não fazer uso’ deste ou daquele recurso mas sim ter uma disponibilidade completa da realidade sonora”.

No início deste capítulo, citamos o que aconteceu na trajetória de desenvolvimento do bebop ao cool jazz e do jazz West Coast. Também naquela época, uma música que parecia caótica ao grande público foi estruturada e do· mada pelo estilo posterior. Naquela época, porém, havia um outro motivo que conduziu aquela “estruturalização”. No início dos anos 50 o motivo era o temor: “a música está cada vez mais complicada – onde se vai parar?”, “assim não pode continuar”, “nós estamos destruindo a música, ninguém nos entende mais”; ou simplesmente: “o músico também precisa viver … ” Esses eram os motivos que, consciente ou inconscientemente, levaram a explosio do bebop a um academicismo infrutífero, seja em sua versão califomiana (West coast jazz) ou na nova-iorquina. Este não é o caso do que acontece hoje. O caminho traçado por Charlie Parker foi seguido até, o fim, até às últimas conseqüências; e os que o seguiram acabaram por despedaçar a atonalidade, sem se apoiar em “séries” ou “estruturas”, abrindo assim, mais que qualquer músico da chamada “vanguarda”, as portas daquilo que hoje se chama “música aleatória”. Os músicos que atuaram neste sentido demonstraram, com a sua atitude, muito mais segurança, conhecimento de causa e maturidade do que temores. .. E essa liberdade alcançada jamais será abandonada.

Esse é o novo estruturalismo dos anos 70 – a liberdade do free jazz permanece audivel dentro dele.

Aqui alguns exemplos de músicos que conduziram essa evolução: Chick Corea, Herbie Hancock, Keith Jarrett, Pharoah Sanders, Leon Thomas, Wayne Shorter, Joe Zawinul, Joe Henderson, McCoy Tyner, Gary Bartz e Alice Coltrane.

♫The Law of Falling and Catching Up (Chick Corea)

O outro elemento importante no jazz dos anos 70 é o rock.

É notória a influência do rock sobre o jazz – e isto mesmo antes dos anos 70 -, embora a influência no sentido contrário, ou seja, do jazz sobre o rock tenha sido muito mais forte. De inicio, percebeu-se apenas uma com· binação de elementos, ou seja, base rock e metais jazzísti. coso Conjuntos como “Blood, Sweat & Tears”, “Chicago”, “Flock”, “Dream”, “Chase” e muitos outros basearam sua linguagem musical nesse tipo de combinação. Tal combinação parecia, para alguns produtores e firmas de discos, mais importante do que qualquer tentativa de revolução do status quo da época. Um exemplo expressivo dessa atitude é o grupo “Chase”. Ele é conduzido pelo pistonista Bill Chase, antigo músico da orquestra de Woody Herman. Quando se ouve a música desse conjunto, pode-se perceber claramente como foi orientada a sua formação: Bill é um extraordinário instrumentista, que domina plenamente o tipo de execução de pistões em grupo, como é usada na big bando Como esse tipo de execução dentro da big band deixou de ser atual aos ouvidos da juventude, Bill separou o grupo, reordenando-o segundo uma base ritmica de rock. Esse tipo de combinação é muitas vezes interessante e, não raro, muito comercial, pois interessa ao mesmo tempo ao público de jazz e de rock. Nem sempre, entretanto, esse tipo de combinação tem satisfeito ao ouvinte mais exigente e poucos foram aqueles que souberam fazer dessa junção uma música realmente nova – “Blood, Sweat & Tears” é, evidentemente, o exemplo mais expressivo.

Convém notar aqui a presença de um músico que constituiu urn caso todo especial nesse desenvolvimento e que, já em meados da década de 60, operava com a integração jazzlrock: Frank Zappa. Curiosamente ele era considerado tanto para o jazz como para o rock, como um “marginal”. Zappa vem da música erudita de vanguarda _ seguidor, particularmente, de Varese (ver capitulo sobre as big bands).

Paralela a esse tipo de evolução – bloco-jazz + bloco-rock -, uma outra atividade musical se desenvolvia (em especial no fim dos anos 60), que se constituiu, tal· vez, na mais convincente tentativa de integração desses dois estilos. A figura-chave dessa tendência era o pistonista Miles Davis, especialmente em seu disco “Bitches Brew”, lançado em 1970.

A critica internacional recebeu esse lançamento com grande entusiasmo. Durante muitos anos a turma do jazz falava em rock sem que um fenômeno musical concreto e convincente viesse justificar esse interesse – havia quase que uma “rock-neurose” no mundo do jazz. Parecia evidente esse amálgama do rock com o jazz contemporâneo sem que ninguém tenha chegado a uma solução satisfatória do problema. Após a morte de Jobo Coltrane formou-se quase urn verdadeiro vácuo no reduto do jazz, quase um desespero – ninguém sabia bem como as coisas deveriam prosseguir.

Vários músicos de jazz morreram muito cedo – de Bix Beiderbecke, o grande trompetista dos anos 20, a Fats Navarro, em 1950, ou Albert Ayler, em 1971. Parece que a intensidade de engajamento que o jazz solicita de seus músicos, particularmente dos mais criativos, é muito maior que em qualquer outra atividade artística, o que representa, ao mesmo tempo um desgaste vital maior, que nem todos conseguem suportar. Curioso é notar também que quando um desses músicos morre sempre deixa uma obra completa e bem acabada. Os próprios admiradores de Bix Beiderbecke nos anos 20 ou de Clifford Brown nos 50 sempre tiveram a impressão que, se seus idolos tivessem vivido mais alguns anos, nada mais de essencial teriam acrescentado às suas próprias contribuições. Outro foi, porém, o caso de John Coltrane. Este nos abandonou quando sua contribuição atingia o ponto alto a que conduzia a evolução musical do jazz para outras bandas. Seu desaparecimento rompeu essa evolução. O mundo jamstico sentiu a perda de um verdadeiro lider e o vácuo deixado por sua morte representou urn toque de perplexidade para o jazz da época. As diversas correntes que se cruzavam, assim como os encadeamentos estilísticos, só vieram a se estabilizar e fluir normalmente após o aparecimento do LP “Bitches Brew” de Miles Davis.

♫Miles Runs the Voodoo Down (Miles Davis)

Nesse meio tempo surgiu toda uma geração de jovens músicos, cujo trabalho estava diretamente influenciado pela música de Miles Davis – alguns seus próprios ex-instrumentistas, como é o caso do contra baixista inglês Dave Holland. Este, em conversa com o crítico inglês Richard Williams, revelou aquilo que esses músicos em geral também achavam: a contribuição de Miles Davis se baseia numa continuidade da tradição do bebop. O característico de sua música é assimilado, na realidade, pela velha prática do pistão solista com acompanhamento instrumental. Acho, porém, que ele deveria solicitar mais a participação dos músicos que com ele tocam; dialogar mais com eles, em vez de deixá-los sempre numa função de “pano de fundo”.

Os músicos que, no decorrer dos anos, passaram pelos diversos quintetos de Miles Davis não s6 ajudaram a desenvolver a sua linguagem como também, quando emancipados, caminharam no sentido dessa fusão jazz/ rock. Os mais importantes desses músicos serão citados no final do capítulo “Jazz-combos”, dentro da seção electrlc jazz.

Notória é também a época em que esse fenômeno aconteceu. “Bitches Brew” foi lançado em 1970, perfodo crepuscular da era do rock. Jimi Hendrix, Janis Joplin, Brian Jones, Jim Morrison e Duane Allman morriam, enquanto os BeatIes se dissolviam. Em Altamont, na Califórnia, aconteceu a maior catástrofe da história do “iê-iê-iê”, quando, numa apresentação dos “Rolling Stones”, quatro pessoas foram mortas e centenas feridas – o espírito otimista de Woodstock foi, assim, completamente destruído.

Em Nova Iorque e São Francisco, fechavam as portas os principais redutos do rock, o “Fillmore East” e o “Fillmore West”. Nenhum grupo ou personalidade marcante adentrava à cena nessa época; ao contrário, Don McLean cantava, no final dos 60, uma triste canção que permaneceu por muito tempo nas paradas e que representava um hino de despedida da era do rock: “No dia em que a música morreu”.

Todos esses acontecimentos se deram no perfodo de 1969 a 1972. Exatamente nessa época surgiu o novo jazz, a ‘integração jazz/rock. Em 69, Miles Davis lançava o seu “In a silent way”, que abriu o caminho para “Bitches Brew”. Em 1971, surgia “Weather Report” e a “Mahavishnu Orchestra”. Nesse ano, o novo jazz já estava praticamente “formado”, com todos os grupos que serão tratados na seção electric jazz.

♫Directions II (Miles Davis)

♫Black Market (Weather Report)

Convém ainda ressaltar que a influência do rock sobre o jazz se deu mais nitidamente em três setores: na eletronização do instrurnental, no setor rítmico e no tratamento do “solo”. Em cada um desses setores desenvolveu o novo jazz uma série de elementos que, embora característicos da música rock, haviam chegado a uma espécie de estagnação.

Quanto à eletronização do instrurnental, por exemplo, os seguintes instrumentos passaram a ser usados pelos praticantes do jazz: piano elétrico, orgão e demais instrumentos de teclado eletrônicos; guitarra e outros instrumentos agora com som amplificado e transmitido por alto-falantes, entre eles, inclusive, saxofones, pistões e percussão em geral, todos com possibilidade de alteração do som através de pedais (ua-ua, eco, eco de fita – repetição em decrescendo de um efeito executado no instrumento); destorcedores de som em geral; aparelhos que transmitem a nota executada e, ao mesmo tempo, a oitaya superior; aparelhos que harmonizam automaticamente uma melodia (Varitone, Multivider etc.); guitarra eletrônica de dois braços; diver~s tipos de sintetizadores etc. Os cinco músicos da orquestra “Mahavishnu”, liderados por Jobo McLaughlin, por exemplo, contam com um instrumental que ocupa um palco inteiro: uma dúzia de alto-falantes, bem como diversos amplificadores e aparelhos de transformação de som, que, somados, transmitem ao público nada menos do que 1000 watts de potência sonora. A primeira impressão nos leva a crer que os músicos de jazz simplesmente adotaram a eletronização geral do instrumental. Convém notar, porém, que, já em 1937, Charlie Christian, da orquestra Benny Goodman, firmava a presença da guitarra elétrica na big band e no jazz em geral. O orgão eletrônico já era popular, através de músicos negros como Wild BilI Davis (“Rhythm and Blues”) e, sobretudo, do grande sucesso internacional de Jimmy Smith, em 1956. Um som quase padrão de piano elétrico se tornou internacionalmente conhecido mediante o êxito de Ray Charles, particularmente com What’d I say, em 1959. A música rock branca passou a fazer uso desse instrumento depois que Miles Davis lançou, em 1968, o seu LP “FilIes de Kilimanjaro”, com Herbie Hancock e Chick Corea ao piano elétrico. Sonny Stitt (1966) e Lee Konitz (1968), músicos de jazz, foram também os primeiros a fazer uso de aparelhos de amplificação de som em instrumentos de metal, assim como daqueles que dobram a oitava e também do Varitone – aparelho que har· moniza melodias. O sintetizador vem da música erudita de vanguarda, onde foi experimentado e testado por R. A. Moog, em trabalho conjunto com Walter Carlos, desde 1957. A maior parte dos transformadores de som em geral têm origem nas experiências da música erudita. de vanguarda, a chamada “música eletrônica”.

Como se vê, apesar de o grande público atribuir à. música rock esse novo mundo de recursos do som eletronizado, o trabalho pioneiro nesse sentido foi realizado por músicos negros. g interessante notar que foi igualmente uma cantora negra, Billie Holiday, que nos anos’ 30 criou, pela primeira vez, um estilo de interpretação vocal especial para microfone, considerado estranho e “revolucionário” na época.

Charles Keil e Marshall McLuhan chamam atenção para o talento especial do afro-americano no sentido da dilatação dos recursos auditivos, sobretudo em função do uso de efeitos eletrônicos. Diz Keil: “If McLuhan’s thesis is correct, the electronic or postliterate age ànd its high powered auditory forces that are now upon us ought to give Negro culture a big technological boost”.

Em resumo: o uso genérico dos instrumentos eletronizados foi preparado pelos negros; sons eletrônicos “puros” foram desenvolvidos nos estúdios de música erudita de vanguarda; a música rock’ popularizou esses recursos sonoros. J azz, “Rhythm and Blues”, música de vanguarda, rock e pop atuaram conjuntamente. Como se observa, o uso da eletrônica para o entretenimento em geral é uma necessidade da época. O homem de hoje tem o seu ouvido “eletronizado”, seja o que vive em favelas ou guetos, seja o que freqüenta festivais de música erudita experimental.

Essa eletronização geral da música já motivou muita polêmica, devido ao grande volume de som que ela permite. Já foi dito que é fisiologicamente impossível tentar ampliar a capacidade auditiva do homem e que esse excesso de volume acaba danificando o ouvido humano – afirmação esta, feita inclusive por médicos especialistas. Acontece, porém, que o maior volurne de som desenvolve também, de outra maneira, a sensibilidade auditiva. Até poucos anos atrás, seria impossível ao ouvinte comurn perceber as sutilezas que hoje se percebe em meio, por exemplo, à avalancha de sons que orquestras como a “Mahavishnu” ou o grupo inglês “80ft Machine” fazem jorrar sobre o público. O alto volurne de som usado no fazer música hoje não é, contudo, urn fenômeno isolado; buta observar a alta faixa de decibéis presente no vaivém da vida moderna. g evidente que o volume da música atual não poderia permanecer nos limites sonoros de épocas anteriores.

É fácil perceber, em ambientes onde se pratica essa música, a atitude dos diversos tipos de público: os mais velhos simplesmente interrompem o diálogo, ficam nervosos, se comunicam, às vezes, por sinais manuais ou gritos, enquanto os mais jovens permanecem serenos e comunicativos, como se nada estivesse acontecendo.

Deixando agora o aspecto “eletronização” do jazz por influência do rock, passemos a outro: o ritmo. Quanto a este aspecto, as primeiras combinações jazz/ rock nos anos 60 não apresentavam interesse especial sobretudo porque o rock inicialmente se baseava em modelos rítmicos muito simples e variava pouco. Basta lembrar do que faziam, em termos de ritmo no jazz, bateristas como Elvin Jones, Tony Williams ou Sunny Murray. A complexidade, virtuosidade e invenção de suas execuções não tinham paralelo em nenhum outro tipo de música ocidental. Foram também muitos bateristas de jazz que desenvolveram certos padrões do rock; à extroversão e alta comunicabilidade dessa música eles acrescentaram, com o tempo, uma técnica de execução mais ‘desenvolvida e variada, trabalho este que atingiu sua maturidade total no início dos anos 70. Um grande baterista dessa linha é Billy Cobham, que pertence hoje à orquestra “Mahavishnu”. São dele estas palavras: “I want my playing to be simple enough for the audience to understand, but intrincate enough for them to be awed by what I’m doing”.

Quanto ao terceiro aspecto, um novo tratamento do “solo”, pode-se dizer que, nos últimos anos, o virtuosismo solista atingiu o ponto mais alto da história do jazz. Ao contrário do que ocorria, porém, desenvolveu-se aqui uma técnica de improvisação coletiva. As bases desse novo tipo de improvisação foram dadas pelo contrabaixista Charles Mingus. Já no fim dos anos 50 e princípio dos 60, se iniciava a prática da improvisação coletiva, sem que se percebesse, na época, que se tratava do nascimento de um novo estilo de execução. No início da década’ de 70, esse estilo atingiu sua maturidade completa; hoje, num conjunto como a “Mahavishnu”, por exemplo, quando os cinco músicos começam a tocar e improvisar, contemporaçeamente, torna-se impossível perceber qualquer tipo de liderança no resultado sonoro.

O pianista Joe Zawinul, do grupo “Weather Report”’ disse numa entrevista: “No nosso grupo é assim: ou ninguém toca ‘solo’ ou todos tocam ‘solo’ ao mesmo tempo!”

♫The Moors (Weather Report)

Como já outras vezes ocorrera nó jazz a expansão de um estilo instrumental provocou o nascimento de uma corrente com objetivos opostos. Sugerida pelo vibrafonista Gary Burton, iniciou-se no fim dos anos 60, uma verdadeira onda de execução instrumental solista, sem acompanhamento de grupo rítmico – às vezes, solo; outras duo. Alguns exemplos expressivos dessa tendência foram o guitarrista John McLaughlin, os pianistas McCoy Tyner, Chick Corea, Keith Jarrett, Cecil Taylor e Oscar Peterson, os saxofonistas Archie Shepp, Antony Braxton e Roland Kirk, o vibrafonista Karl Berger; na Europa, Gunter Hampel, Martial Solal, Derek Bailey, Terje Rypdal, Albert Mangelsdorff, Alexander von Schlippenbach e Jobo Surman; no Japão, Masahico Sato e outros.

♫Falling Grace (Gary Burton & Chick Corea)

♫Radiance pt.12 (Keith Jarrett)

É claro que, antes, já houve solo não-acompanhado no jazz. Coleman Hawkins gravou o primeiro solo de instrumento de sopro não acompanhado em 1947: Picasso. Isso para não falar nos grandes pianistas do jazz, que, antes mesmo do início do século, tocavam sem acompanhamento. dos mestres do ragtime a James P. Jobnson e Fats Waller, até Art Tatum, que deixaram brilhantes exemplos dessa maneira de fazer música. Aqui pode-se citar também os duos – sem acompanhamento de grupo rítmico – realizados por Louis Armstrong e Earl Hines – Weather Bird, em 1928 -, com vários breaks e cadências solistas.

♫Picasso (Coleman Hawkins)

♫Begin the Beguine (Art Tatum)

♫Weather Bird (Louis Armstrong & Earl Hines)

A tendência do solo não-acompanhado nos anos 70, distante da amplificação/ eletronização do som, revela urn certo intimismo e personalização da execução, de características claramente românticas.

Mas, voltando à relação jazz/ rock, se poderia dizer que, até bem poucos anos atrás, músicos dessas duas tendências praticamente não se entendiam musicalmente. Os adeptos do rock achavam que a música dos “free-jazzistas” era uma verdadeira loucura, desordenada e incompreensível. Por seu turno, os músicos do free jazz achavam o rock algo simples, primitivo e fruto de uma “máquina” com objetivos puramente comerciais.

Mesmo no início da década presente, havia ainda urn pouco dessa rivalidade; o importante, porém, é que da fusão desses dois estilos e da assimilação de elementos musicais de outras fontes nasceu uma nova unidade artística para o nosso decênio. Para aqueles que acompanham de perto a música popular, a integração desses dois estilos não constitui surpresa tio grande assim. Na realidade, vários elementos usados pelo rock são de origem jazzística, como o blues, o spiritual, a gospel-song e a música popular Idos guetos negros, também chamada rhythm and blues. Lá já havia a batida simétrica do rock, o fraseado do soul a do gospel, a forma blues, assim como o som da guitarra elétrica há muito tempo. Aqui é importante citar a figura-chave do blues-guitarrista negro B. B. King, pois, em sua música, já se encontravam todos os eleinentos rock, pop e beat modernos. O próprio Eric Clapton chegou a declarar: “Existem pessoas que afirmam que eu teria mostrado algo de novo. Bobagem! A única coisa que fiz foi copiar B. B. King … ” Eric Clapton é considerado pela moderna geração do rock como o elemento que forneceu as “chaves principais” de execução dessa música. Aliás, o background negro da música de Eric Clapton justifica, ao mesmo tempo, as palavras de Gary Burton, um músico que é sempre citado quando se fala de influência do rock sobre o jazz e vice-versa: “Na realidade, não existe influência do rock sobre nós, jazzistas. O que existe, isto sim, é uma mesma base para ambas as músicas”.

Quanto à posição do artista de hoje frente aos diferentes estilos e tendências, e frente à própria execução instrumental, foi bem definida pelo percussionista Airto Moreira, que introduziu todo o rico, vivo e alegre arsenal rítmico brasileiro na música de um Miles Davis, Chick Corea, John McLaughlin e muitos outros do jazz e do rock:

“O que mudou foi a atitude do músico de hoje .. , Existem pessoas que acham que, para se tocar jazz, é necessário assumir uma determinada posição – se isolar, não fazer questão de se comunicar, dizer coisas estranhas etc … Muitas vezes, mesmo tocando free, eu tinha a impressão de estar lutando com meus colegas e para atingir o público era obrigado a dobrar a energia da execução, a ponto de quebrar os meus instrumentos! Parece que cada urn to· cava para si, para satisfazer o seu próprio ego e eu não me sentia feliz como hoje o sou. Agora, tudo ficou mais simples; caíram todas as fronteiras – entre músicas e entre músicos. Hoje se toca olhando para os companheiros e a contribuição de cada urn – venha ele do rock, do jazz ou de ‘outras plagas – se realiza na comunicação com seu semelhante. Fazer música agora se tornou uma adorável brincadeira … “

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