Sonoridade e Fraseado

O elemento característico do jazz, que o difere consideravelmente da música tradicional européia, é a sua so noridade.

Quando, da Renascença para cá, se cristalizou a linguagem instrumental e vocal, assim como a formação sinfônica básica que se conhece no Ocidente, todo executante procurou assimilar uma técnica estandardizada, que servis-se àqueles ideais sonoros e conceitos estéticos. A concepção geral de “beleza musical” européia moldou uma sonoridade que se aplica a todo instrumentista, seja ele solista ou integrante de um conjunto, seja no século XVII ou XIX. Quando se iniciou a edificação do jazz, os executantes, mesmo usando instrumentos oriundos da tradição européia, não procuraram se integrar em nenhum conceito estético, ou modalidade sonora já existente. Cada músico criava o seu próprio som, sua própria “técnica vocal”, sua própria forma de expressão, em função de sua experiência vital e emocional. Por essa razão, o jazz conheceu, em sua curta história, tantos diferentes padrões de sonoridades, tantos diferentes toques e entoações vocais e tantos estilos. Na não-estandardizada sonoridade dos improvisadores do jazz se espelha a personalidade do próprio músico. No jazz não existe bel canto e nem “violinos ardentes”; sua sonoridade é dura e clara. A voz humana é crua agressiva ou gemida e o som instrumental é rude não-filtrado. Quando um instrumentista de sinfônica se torna integrante de um conjunto de cem ou cento e vinte elementos, passa a repetir, quase automaticamente, o repertório padronizado e se preocupa, praticamente, apenas com problemas individuais de dedilhado, arcada ou respiração, indiferente a problemas formais maiores ou a qualquer tipo de motivação estilística, histórica ou mesmo extramusical que teria gerado a obra que executa. Na maioria dos casos, o instrumentista de sinfônica se acomoda em sua rotina profissional, não raro reagindo negativamente a obras experimentais. Fenômenos dessa natureza são inconcebíveis nos do mínios do jazz. Sem um engajamento total, não existe jazz, razão pela qual sua linguagem é cem por cento autêntica e convincente, mesmo quando contraria os “padrões estéticos” ocidentais.

As características sonoras de execução de um músico ou grupo de jazz formam parte essencial de sua lingua gem. Em termos de música clássica, por exemplo, é necessário que o observador seja quase um analista especializa do, para identificar quem é o regente de determinada gravação de uma sinfonia de Beethoven, ou solista de uma sonata de Brahms.

A sonoridade do jazz, para citar, grosso modo, alguns exemplos, é o lento e expressivo vibrato do sax-soprano de ♫ Sidney Bechet, o som volumoso e erótico do sax-tenor de ♫ Coleman Hawkins, a entoação áspera da corneta de ♫ King Oliver, os jungle-sounds de ♫ Bubber Miley, a classe e a clareza da clarineta de ♫ Benny Goodman, a metálica frieza de ♫ Buddy DeFranco, a tristeza e o intimismo do toque de ♫ Miles Davis, o triunfo de ♫ Louis Armstrong, a sonoridade lírica de ♫ Lester Young, a irradiação agressiva e direta de ♫ Roy Eldridge, ou o brilho claro de ♫ Dizzy Gillespie.

No jazz tradicional, a sonoridade instrumental é mais característica que no atual. Em compensação, um novo elemento se distinguiu e se desenvolveu no jazz de hoje: o fraseado. No toque do trombonista ♫ Kid Ory havia frases que tanto podiam pertencer à música circense, como à militar da virada do século. Sua música era jazz, porque a sonoridade nada tinha a ver com esses dois tipos de música citados. Numa peça sinfônica com solo de saxofone, a sonoridade de ♫ Stan Getz – pelo menos a sonoridade dos anos 50 – se harmonizaria perfeitamente. Sua interpretação e improvisação possuem, porém, um fraseado característico, o qual não se encontra nem no jazz tradicional nem na música sinfónica, ainda que moderna.

Como se observa, no decorrer da história do jazz, houve uma transferência de importância de um de seus aspectos característicos – a sonoridade – para outro – o fra seado. Este fenómeno ficará ainda melhor esclarecido quando tentarmos definir a música jazzística.

A sonoridade e o fraseado são os elementos mais “negros” da música do jazz. Suas origens se ligam diretamente aos shouts dos negros, nas plantações dos Estados do Sul, os quais, por sua vez, se originam na costa ocidental e nas florestas da África. Juntamente com o swing, eles formam os elementos mais caracteristicamente negros dos elementos do jazz.

Pode-se comparar a sonoridade que os negros tiravam dos instrumentos europeus com semelhante situação, ou seja, quando eles chegavam à América como escravos e eram obrigados a falar um idioma de origem igualmente européia. Aliás, nos Estados do Sul se fala um inglês com um sotaque especial, mais cantado, o qual resultou da influência do sotaque do negro sobre o idioma na região.

Assim como brancos e negros nos Estados do Sul falam hoje com o mesmo sotaque, a sonoridade do jazz se formou desse misto de cultura européia/americana e negra, a qual é identificada nesse tipo de música, seja o instrumentista branco ou de cor. Roy Eldridge afirmou certa vez que os verdadeiros criadores e intérpretes do jazz seriam os negros. Leonard Feather fez então um teste para provar a improcedência dessa afirmação. Tocou na vitrola uma série de gravações de alto nível e reconhecidamente jazzísticas e pediu para Roy, que não sabia quem eram os músicos, identificar a cor da pele dos executantes. Roy não conseguiu fazê-lo.

Benny Goodman talvez não teria se tornado “The king of swing”, se não fossem os arranjos do negro Fletcher Henderson. Não resta a menor dúvida, porém, de que a orquestra de brancos de Benny Goodman executou melhor esses arranjos do que o próprio Fletcher o fazia com seu conjunto de negros.

Por outro lado, o branco ♫ Neal Hefti escreveu os mais excepcionais arranjos para a orquestra do negro Count Basie e essa orquestra de negros os executou com um brilhantismo que jamais Neal conseguiu atingir com seus próprios músicos brancos.

Inúmeras vezes na história do jazz aconteceram fatos semelhantes a esses. Não raro os problemas de discriminação racial existentes nos Estados Unidos têm levado músicos e observadores a conclusões pouco objetivas no que se refere à contribuição de brancos e negros. Quando isso acontece, convém fazer o teste de Feather: fechar os olhos para a cor da pele e procurar sentir o sound e o fraseado característico do jazz, uma de suas mais importantes contribuições à cultura musical do Ocidente.

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