A Improvisação

(3. OS ELEMENTOS DO JAZZ (Berendt p. 113-147))

“Há 150 anos atrás iam os nossos antepassados a concertos para ouvirem Beethoven, Thalberg e Clementi improvisarem livremente; antes ainda, iam à igreja ouvir Bach, Buxtehude, Pachelbel e outros. Hoje, para ouvir esse modo de fazer música, temos que recorrer a ♫ Lionel Hampton, ♫ Erroll Garner, ♫ Milt Jackson, ♫ Duke ElIington ou ♫ Louis Armstrong. “Eu gostaria de saber qual a razão dessa estranha metamorfose”, disse certa vez Burnett James em um de seus artigos sobre improvisação na música de jazz.

Na realidade, em toda a história do jazz, de Nova Orleans à erupção da vanguarda atual, se improvisava da mesma maneira que os velhos mestres da música de concerto o faziam, ou seja, baseados em esquemas harmónicos.

Do fim do século passado [n. ed. “século XIX”] para cá, porém, a improvisação praticamente desapareceu na chamada música erudita. Nem sequer as cadências, parte do concerto que o compositor deixa na obra para a livre improvisação do intérprete, são realizadas pelo solista, por mais importante ou famoso que seja. Além disso, de uns tempos para cá, em conseqüência, inicialmente, de uma atitude anti-romântica, criou-se o fantasma da “fidelidade ao texto original”. Esse pretenso “rigor interpretativo”, é absolutamente falso, pois Haendel ou Vivaldi, quando escreviam suas sonatas e concertos, apenas notavam na partitura as notas básicas da obra, em torno da qual o solista improvisava, acrescentando um sem-número de ornamentos e fiorituras. Arnold Dolmetsch declarou certa vez que deixar de lado a improvisação em torno do texto dado é algo tão bárbaro como se um arquiteto moderno, a pretexto de revelar as “linhas básicas” de uma construção gótica, a despisse de toda a sua ornamentação flamboyant.

O músico de jazz improvisa baseado numa seqüência harmónica da mesma maneira que Bach e seus filhos o faziam quando tocavam uma chacona ou uma ária. Eles realizavam inúmeras variações em torno do esquema harmónico de uma chacona e, quando tocavam uma melodia, ela era ornamentada da primeira à última nota. Essa técnica de ornamentação, que no barroco foi tão praticada, é a mesma que usa o músico de jazz – a mesma que usa ♫ Coleman Hawkins quando toca, por exemplo, o seu Body and soul. O baixo-cifrado, o organum e o cantus firmus, formavam o esqueleto de uma peça, tanto quanto os acordes e as formas-blues o são para a improvisação do instrumentista do jazz. Winthrop Sargeant se refere a essa esquematização harmônica como um “controlling structural principIe in jazz”.

Não queremos dizer com isso que os primeiros músicos do jazz tinham consciência da técnica de improvisação barroca, a qual teriam aplicado em sua música. Isso resultou naturalmente a partir do princípio de que, o intérprete não é um mero reprodutor de um esquema impresso, mas um músico que participa criativamente de uma realização musical, quase como um seu co-autor – esse princípio foi deixado de lado na música erudita a partir do século XIX, mas permanece vivo em várias outras culturas do mundo.

Toda improvisação jazzística se baseia num tema, excetuando-se, evidentemente, a improvisação do free e do jazz dos anos 70. As formas mais comumente usadas numa composição jazzística, são as seguintes: “forma-canção”, A A B A com 32 compassos – tema inicial, repetição, segundo tema e volta do tema inicial (cada parte com 8 compassos); “forma blues”, com 12 compassos, a qual será explicada no capítulo sobre o blues. O músico de jazz, baseado na seqüência harmónica da melodia (“canção” ou blues), constrói sua improvisação, que pode ou não estar diretamente ligada à melodia dada. A improvisação que ornamenta uma melodia é a mais antiga. O clarinetista do New Orleans Buster Bailey, dizia: “Naquele tempo eu não sabia o que quer dizer ‘improvisação’. Ornamentação ou embellishment eram as expressões que eu conhecia”. O tipo, de improvisação mais recente do jazz, também chamado de chorus, praticamente nada tem a ver com a melodia original. Ela é completamente livre e se liga apenas ao esquema harmónico básico da melodia. No exemplo que segue pode-se observar na primeira linha o início do tema How high the moon, um dos mais famosos do período do bebop.

Na segunda (a), terceira (b) e quarta linha (c), estão escritas as improvisações (chorus) que famosos instrumentistas realizaram a partir das harmonias de How high the moon. É fácil observar, mesmo sem saber música, como as três versões são, melodicamente, absolutamente diversas.

Exemplo 1

Esses três exemplos foram notados a partir de um disco “AlI stars” da RCA, onde nem sequer o nome do tema original é assinalado, mas sim, a denominação genérica lndian winter. Os autores das improvisações, ou chorus, são o trombonista J. J. Johnson, o pistonista Charlie Shavers e o sax-tenor Coleman Hawkins.

É curioso notar que, apesar de os chorus serem completamente livres, com o passar do tempo, vai se cristalizando, naturalmente, um tipo de improvisação para cada tema, a qual acaba sendo praticada, aproximativamente, pelos mais diversos instrumentistas. Não apenas isso, mas algumas improvisações em torno de determinados temas se tornam, às vezes, tão famosas quanto a própria melodia. Para lembrar algumas delas podemos citar as improvisações famosas de ♫ King Oliver sobre Dippermouth Blues, de ♫ Alphonse Picou, sobre High society, de ♫Charlie Parker sobre Parker’s mood, de ♫ Ben Webster sobre Cotton Tail, de ♫ Stan Getz sobre Early autumn, de ♫ Bix Beiderbecke sobre Singing the blues, de ♫ Louis Armstrong sobre Westend blues, de ♫ Lester Young sobre Song of the islands, de Chu Berry ou ♫ Coleman Hawkins sobre Body and soul, de ♫ Miles Davis sobre All of you, de ♫ John Coltrane sobre My favorite things.

Como se conclui, improvisação é quase uma segunda forma de composição. Neste ponto, o jazz se diferencia radicalmente da música erudita européia. Aqui, o compositor escreve nota por nota e o estudante de música aprende a técnica de reproduzi-las fielmente. No jazz, cada composição está ligada intimamente com a personalidade musical do seu autor e, quando ela for executada por outro intérprete, a composição é praticamente recriada. O conceito de improvisação é, portanto, bastante amplo. Um instrumentista que cria um chorus é ao mesmo tempo um improvisador, um compositor e um intérprete. Mesmo em termos de arranjo, esses três elementos do jazz têm que estar intimamente ligados. O mesmo não acontece com a música de concerto europeia, na qual o instrumentista não é obrigado a reunir essas três qualidades. Ao contrário, às vezes isso traz até benefícios – existem obras sinfônicas de Stravinsky em disco, muito melhor realizadas por outro regente do que pelo próprio autor. No início de sua carreira Miles Davis não estava tecnicamente pronto. Nenhum outro músico maduro, porém, executava suas composições como O próprio Miles o fazia. Embora pareça paradoxal, Miles Davis era um compositor e intérprete já pronto, embora como instrumentista ainda fosse deficiente – e mesmo, assim, nessa época, ele já influenciava pistonistas famosos.

Um chorus pode se tornar facilmente ridículo, se for executado por um instrumentista que não o criou. A improvisação, como dissemos, é quase uma forma de composição e, por isso, está intimamente ligada às características do toque do instrumentista que a cria, aos pequenos truques que cada um inventa durante a sua evolução técnica e, não menos, ao estado emocional, no momento, do executante.

Shorty Rogers disse o seguinte: “Na minha opinião todo bom músico de jazz é também compositor. E sempre foi assim que eu tratei os ,músicos de minha banda, pois quando escrevia. os arranjos, eu apenas notava algumas instruções e deixava o restante para a espontânea capacidade criativa de cada um completar.Nós falávamos a mesma linguagem, eu como compositor ou arranjador e eles como improvisadores ou intérpretes”.

Jack Montrose, um dos arranjadores-líder da West coast diz: “Para se chegar a arranjar e compor no jazz, é necessário, antes de mais nada, ser um bom instrumentista e, acima de tudo, um bom improvisador”.

Resumindo: A improvisação é um “objeto único” ela existe em função daquele que a criou.

A improvisação no jazz reúne três funções: a de intérprete, a de compositor e a de improvisador.

O arranjador deve ter, ele próprio, domínio dessas três funções para poder escrever correta e criativamente e se comunicar bem com seus músicos.

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